CARLOS SEMEDO
Azinheira do raspa
Foi num tempo no qual os lobos ainda faziam parte do quotidiano da Beira Baixa. Os pinheiros também ainda não tinham tomado conta da paisagem e para além dos arbustos e árvores como a oliveira, eram os cereais que conduziam a relação do homem com os campos. Naquele sítio, havia um belo núcleo de azinheiras, dominado por uma, imponente e matriarcal.
Como sempre, aquele homem era dos últimos a vir para o povo, depois de um dia de trabalho lá em baixo, perto do ribeiro. Talvez tivesse uma particular apetência para zelar pela integridade do caminho que fazia quase todos os dias. Podia fechar os olhos e seguir, que a memória dos seus pés o levariam até ao casario, contudo ele abria-os bem despertos e sagazes na procura das suaves transformações ditadas pelas estações do ano e mantinha-se alerta nos quase três quartos de hora, que demorava, a bom passo, o caminho desde a ribeira até encontrar a primeira casa.
Naquele dia, deteve-se um pouco mais lá abaixo e quando começou a subir já anoitecia. Zelar pelas sombras do caminho era uma rotina, mas hoje, aqueles minutos adicionais junto ao ribeiro, tornaram a subida um desafio ao ritual, exaltante de tão bem o conhecer. Foi sem aviso que o lobo lhe apareceu com os seus olhos brilhantes e ameaçadores. É nestas alturas que o cansaço desaparece num instante. Correu para a árvore mais próxima, a tal azinheira que dominava a clareira. O lobo, pleno de convicção predadora e justificando as histórias de terror contadas ao lume, tentou subir a árvore, mas a única coisa que conseguiu foi rasgar o tronco, irmanado na respiração ofegante com o homem.
Extenuado pelo medo, João, era esse o seu nome, permaneceu o mais quieto possível, como se a imobilidade pudesse torna-lo invisível, levando o lobo a desistir. O tempo foi passando e o lobo assumiu o jogo estático, que se revelou pouco profícuo para atingir os seus objectivos. Foi nessa altura que um ramo caiu da azinheira, levando o lobo a uma dança enérgica. A partir desse momento, João foi lançando pequenos ramos e durante quase duas horas, a dança foi uma constante.
Quando já desesperava, viu, ao longe, umas pequenas luzes. Gritou duas, três quatro vezes e um murmúrio transformou-se rapidamente em vozes distintas, algumas de companheiros da labuta diária. De imediato esqueceu o lobo e os seus olhos iluminaram-se com as lanternas de azeite. Quando voltou a olhar para baixo, o lobo tinha desaparecido.
Os únicos vestígios da sua presença eram mesmo os inúmeros ramos no chão e os sulcos no tronco principal o que conduziu ao baptismo daquela azinheira como a “do raspa”. Só assim, com essa evidência irrefutável, a história do João foi passando de geração em geração até eu a ouvir há uns meses atrás, quando passava no local, perto das Ferrarias, onde hoje o eucaliptal impera.