Carlos Semedo
MÚSICA CONTEMPORÂNEA
A convite da associação Síntese, sedeada na Guarda, participei recentemente numa Tertúlia sobre o tema Música Contemporânea e programação cultural no interior. O modelo não foi o de conferências seguidas de debate, mas sim uma conversa na qual as diversas camadas do tema foram abordadas pelos convidados. A propósito desta Tertúlia, partilho algumas das minhas reflexões sobre o assunto.
O que é o Interior? Portugal é um país com uma escala muito precisa e em termos musicais cada cidade, cada região dependeu muito mais dos agentes, das pessoas concretas que criaram dinâmicas, muitas vezes independentemente do poder político. Em cidades nas quais existiam escolas de música, havia condições para que a música contemporânea pudesse ter um papel de destaque na oferta formativa e de concertos, mas não era garantido que tal acontecesse. Mesmo em Lisboa, a situação não era muito diferente, apesar de uma escala comparativamente maior e, claro da existência da Fundação Calouste Gulbenkian. Ao longo das últimas décadas, a evolução aconteceu sobretudo ao nível da disseminação da oferta educativa, no território nacional, mantendo-se a música contemporânea num plano relativamente marginal. Estamos, pois, perante um mapa de Portugal complexo, mas bastante uniforme no que respeita à oferta de concertos, encomendas a compositores e no trabalho pedagógico nas escolas de música. O Interior é, na minha opinião, o país todo.
Nesta região, no eixo Abrantes/Guarda, um dos aspectos interessantes é a relativa mobilidade de muitos instrumentistas, sobretudo em funções docentes. É, também, notória a capacidade de as escolas de música criarem condições para que alguns músicos se fixem na região. No caso da cidade de Castelo Branco, o caracter distintivo advém sobretudo da existência da Escola Superior de Artes Aplicadas, que tem na sua oferta formativa a Música. Esta dinâmica não cria, por si só, uma oferta ao nível da música contemporânea estando tudo, mais uma vez, dependente dos actores locais que tenham especial sensibilidade para a necessidade de promover o confronto/diálogo dos públicos com as linguagens por vezes desafiantes da contemporaneidade. Para além de uma programação regular em Castelo Branco, há os exemplos da Guarda, com o Síntese - Ciclo de Música de Música Contemporânea e de Seia, com os seus Dias de Música Electroacústica.
Uma outra pergunta fundamental: de que falamos quando nos referimos a música contemporânea? Fará sentido hoje a fórmula de considerarmos como tal, a música composta depois do Expressionismo e Impressionismo? Creio que não. Muitas obras escritas ao longo do séc. XX são assumidamente canónicas e os ouvidos contemporâneos já incorporaram e assimilaram os seus desafios. Por outro lado, quando falamos de compositores contemporâneos, a diversidade de propostas musicais é de tal maneira evidente, que a esmagadora maioria do público tenderá a fixar-se em uns poucos pontos de referência que, por uma razão ou outra, estejam mais próximos do seu gosto e sensibilidade.
Que fazer, para que o público tenha curiosidade de ir ouvir uma obra desconhecida e, por vezes, de um compositor igualmente desconhecido? Este é, hoje, um dos grandes desafios. O afunilamento do gosto e a curiosidade dirigida (muitas vezes pelo algoritmo, a coberto de uma democraticidade, de uma aparente liberdade quase total) dificultam imenso a resposta esclarecida. Como fazê-lo, quando no espaço público, televisão e rádio, a exposição desta música é quase irrelevante e quando na internet, sobretudo nas plataformas próximas das redes sociais, estamos tão vulneráveis à abundância de estímulos?
Tive um professor, há muitos anos, que me aconselhou a ouvir, todos os dias, logo pela manhã, obras ditas contemporâneas. Procurei seguir esse conselho, durante muito tempo e posso considerar que muita da minha abertura e disponibilidade para ouvir diferentes propostas radica desses tempos, nos quais, num misto de prazer e sacrifício, fui desbravando territórios desconhecidos até então. Esta pode ser a resposta para alguns, poucos, mas para o grande público, que fazer?
Dois pontos importantes: programação que cumpra com uma densidade adequada e uma constância no tempo. Programar uma ou duas vezes por ano, obras contemporâneas é ineficaz. É claramente necessária, uma constância, que possa gerar uma habituação e um diálogo interior no ouvinte. A questão da densidade é, também ela, fulcral. Muitas vezes, será mais adequado ao público, a audição de uma obra contemporânea integrada num programa com obras clássicas ou românticas, ao invés de programas totalmente dedicados à contemporaneidade. Notas de Programa bem elaboradas poderão ajudar o público a contextualizar o que irão ouvir, comentários feitos pelos intérpretes, conversas com os compositores, cruzamentos artísticos e, muito importante, a inclusão nas práticas escolares, nos Conservatórios, Escolas Superiores e Universidades, são possíveis respostas a esta equação de como aproximar o público da expressão musical dos nossos dias.
Como nota final, a percepção de que as dificuldades sentidas relativamente à música, são extensíveis a outras áreas artísticas, como por exemplo, a dança, teatro e as artes plásticas.