A PROPÓSITO DA EXPOSIÇÃO DE PIRES BRANCO PATENTE NA MOAGEM DO FUNDÃO
O arquitecto discreto das substâncias
Esta mostra ilumina um dos mais notáveis criadores da trama que tece e materializa a paisagem identitária da Beira contemporânea. Pires Branco foi um arquiteto tecelão, codificador de vivências gizadas a partir de um tempo novo, erguendo uma outra gramática de sentidos descodificadores e provendo um olhar renovado sobre as ligações entre o homem e o espaço. Evocar Pires Branco é falarmos de uma conjugação de vontades e de desígnios que estão no âmago da matriz do seu itinerário profissional: pensar o território. Um território que vai afirmar uma comunidade plural que se estrutura e se projetará em formas, funções, zonas, políticas, substâncias, circunstâncias, emoções e símbolos.
Na história da arquitetura do Sul da Beira Interior do Século XX, entre a montanhamãe da Estrela e as linhas de água do Zêzere e do Tejo, é um nome referencial não apenas pelo seu pioneirismo criador mas, também, pela continuidade e fidelidade temporal a este laboratório geográfico.
Pires Branco concretiza um eixo do património beirão que percorre um côncavo local sempre em parceria com várias convexidades que o ligam a outros horizontes numa mestria ampla de transformação e de renovação da paisagem da Beira. O conjunto da sua obra revela uma ampla diversidade de atos, vontades, desafios e escalas em confronto com os perfis vivenciais tradicionais então predominantes nestas longitudes do interior de Portugal. O seu tempo criativo percorreu os contraditórios finais dos anos cinquenta do século passado, numa Beira em palpitação conservadora, atávica e rural cujas gentes, os seus poucos haveres e esperanças partiriam durante toda a década de sessenta e setenta para distintas margens europeias na desmedida aventura da emigração.
Pires Branco ficou no interior e iluminou uma nova interioridade arquitetónica, atravessando fronteiras e conjugando direções entre as estratigrafias rurais e as emergentes presenças urbanas da paisagem. De um secular passado rural, provinciano, lento, de geologia monocromática, a obra de Pires Branco vincou na paisagem todos os significados materiais e imateriais contidos na palavra urbano. A sua obra traduz, desse modo, uma persistente actualização e uma reservada, mas analítica e orgânica ação que afirma a contemporaneidade concretizada em formas distantes da formatação e idealização tradicional. Castelo Banco, Fundão e Covilhã foram as suas cidades visíveis.
A carta da sua obra estabeleceu-se, também, numa dicotomia dinâmica no território entre aquilo que é meu e aquilo que é ou será nosso, do que é de todos, numa porosidade fronteiriça entre sítios, moradas, terras, mercados, praças, ruas, jardins, igrejas, bairros e zonas. Arquitetava e planeava, deslocando-se e oscilando entre o oikos e o topos. Nunca esqueceremos o impacto que nos provocou o edifício da Segurança Social de Castelo Branco que rompeu o velho muro alvo da nossa memória de infância, antiga fronteira da face Este da cidade atravessada pelo caminho-de-ferro e que separava as casas dos campos e dos granitos. Carapalha, nome de uma espécie de carvalho, é hoje o bairro mais populoso da cidade. Do campo restaram apenas os topónimos das quintas e das eiras.
Ressaltamos também a edificação da Igreja de Nossa Senhora do Valongo que, com a sua volumetria ascensional, sacraliza o caos, numa redenção da desordem de uma das maiores áreas de clandestinização urbana surgidas em Portugal nos anos oitenta.
Pires Branco não ficou nunca à margem ou ao aconchego do calendário cíclico. Abrigou o tempo e o espaço no nosso viver conjugando a firmeza das raízes à livre imaginação do futuro.
Pedro Miguel Salvado