QUEM É LOUCO
Ainda que o aforismo garanta que “de médico, de poeta e de louco todos temos um pouco”, que sei eu sobre a loucura? Mas fascina. Um louco interpela-nos. Mais do que um parvo, um tolo ou um tonto. São tipos diversos. Sigo Fernando Pessoa que questionava: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria? //. E reconhecia: Fito-me frente a frente / E conheço quem sou. / Estou louco, é evidente, / Mas que louco é que estou? //.”
Deuses e demónios convocam-nos, nesta atmosfera, para linguagens-outras.
- “Tinha um amigo que desenhava muito bem. E pintava. Falava sempre com os desenhos, está a ver? Tinha o coração dentro de mim. Um dia, foi a uma Igreja, arrancou o coração. O meu amigo morreu. Ainda lá está… Na Igreja.”
Que amigo era este? E ele, quem é? Conta tudo e parece tão calmo, tão feliz, tão límpido… O seu corpo fora o túmulo de quê? De si? Que amigo se lhe morreu?
Jovem bonito de cabelo comprido, moreno de “verde luna”, irmão de “los gitanos” de Garcia Lorca, no toque flamengo, no corpo que baila, na elegância… Que confessava?
Não soluça como aquele outro, que vem além, a arrastar-se como um zombie, estremecendo só o corpo, sem expressão.
- “Hoje doem-me os dentes. Estão a crescer; hão de sair para fora… Sou do Oceano Atlântico…” As mãos estavam agarradas ao rosto, repuxando a pele, o cabelo… Sem lágrimas.
Que loucura é esta? Ouvia-o com atenção, mas não fiz perguntas; tolhiam-se-me as palavras pelo respeito pelas narrativas curtas mas certeiras. Em demanda de sentido? E para quê o sentido?
Pedia bombons. Comia-os freneticamente.
- “É a senhora que os faz?”
Sei lá se ouviu a resposta! Havia momentos em que recordava preceitos de cortesia?! Cabia elogiar o que lhe agradava?
Gravei estas emoções / impressões, sem querer. Do choro ao riso, percebi que o mundo, às vezes, pode ser só a preto e branco. Que plano se oculta por detrás desta (s) vida(s)? Quem o traçou?
Numa idade em que o amor, a glória, o prazer de viver acenam por todo o lado, em que as festas são alimento de alma, e a vida é iluminada pelo luar e por estrelas sem fim, que agonia o lançara naquela morada? Veio para não ficar na valeta?
Parece-me cansado. As horas escorrem devagar! Olha o sol de inverno a entrar pelas janelas. À noite, só dorme depois de ouvir a despedida das aves que piam saudades!
Invento: Se o seu amigo desenhasse outra vez?! Chame-o, sapateie e grite pela liberdade, furiosamente…
Quando? Logo está esgotado, sem energia, débil, domado. É árvore quebrada, dobrada pelo fogo. Como renascer? Que é do verde? Que é da vida?
Às vezes, sei que aquele outro delira e redemoinha nos montes desconhecidos, fala e assobia com o vento, é feliz. Em êxtase, experimenta palavras e músicas e frases que semeia com entusiasmo.
E há os amigos que não entendem a harmonia, o amigo que visita o coração. Para quê perceber? Hão de encerrá-lo de novo. Com portas fechadas, qualquer chama morre. Ali assistem a tristeza e o desconcerto. Malditos sejam quem lhes devora a vida e os encaminha para caminhos velhos com ecos de perdição.
As cabeças fervilham. Há uns dias piores do que outros.
- Queres passar aqui o resto da vida?
- Vamos fazer um filme, para contarmos a todos…
- Tens de escolher um tema e construir um guião…
Querem ver-se livres de nós. Que vazio! Que tédio! Que agonia!
Voltar ao trabalho, à escola? São cruéis os normais. Preconceituosos e egoístas, isolam os que chamam loucos. Que é da sanidade do mundo onde eles vivem?
Sem amigos, deixam que os sonhos os protejam. Não riam. São os sonhos que em revelações dizem a fraternidade e salvam!
Que sonhe! Um dia, hei de viajar pelo mundo e levar comigo a catedral, as gárgulas, as histórias, os cânticos. A neve com a claridade branca de luz!
Trago um gosto de amargura no coração; às vezes, ainda imagino o grito prolongado, agudo, a entrar pelas janelas, as castanholas, a guitarra e uma canção a abrir-me o peito como um bisturi.
O meu amigo? Ainda lá está, na Igreja. Pede-me socorro. Tenho raízes, estou pregado ao chão e o campo é de Primavera: flores e verde. Com cascatas de água do degelo… Horas de calvário são estas, sem esperança; que louco sou?