VITIVINICULTURA E LITERATURA: LA PART DES ANGES, A VERDADEIRA METODOLOGIA DE ESCRITA
Muitos dos romancistas que conheço começaram por expressar-se de forma poética. Para caminharem da poesia à prosa precisaram do gigantesco passo de um anão porque, como disse Mia Couto, «a questão do género literário não é, de resto, a mais importante para um autor cuja escrita (prosa e poesia) se contaminam e que escreve “pelo prazer de desarrumar a língua”».
O importante é mesmo a metodologia que adotam. Eu prefiro La Part des Anges.
«O Quinhão dos Anjos? Mas isso não é a parte do vinho que se evapora através do telhado das caves quando o envelhecimento é feito em casco ou em tonel?», perguntarão.
«É», respondo, nada surpreendido com a vossa vasta informação.
«Metodologia de escrita? Estás a brincar!»
«Falo muito a sério.»
Explico: Se La Part des Anges ajuda um vinho do Porto a perder gradualmente algum do seu volume pela evaporação de uma parte (aliás, pequena) da humidade e da aguardente, os compostos aromáticos, açúcares e ácidos, que não evaporam, tendem a ficar mais concentradas com o tempo, e o vinho quase se torna numa essência, imagine-se o que pode acontecer às ideias transformadas em palavras escritas (e estas em textos literários) se lhes damos tempo para que se evaporem algumas humidades (insistências) e aguardentes (exageros enriquecedores)?
«Mas a literatura não é Vinho do Porto!», teimareis.
«Mas não é menos difícil a sua produção.»
«Nem parecida.»
«Quem disse? Aqui o vitivinicultor literário sou eu. Posso explicar?»
Explico: Tenho para mim que os grandes escritores, com maior ou menor frequência, estruturaram as suas obras em nove princípios, tantos quantos os passos necessários para que os grandes vitivinicultores produzam os seus vinhos que, sendo diferentes na designação, perseguem exatamente o mesmo objetivo: deleitar-nos com o produto final.
Sigam-me, por favor. Uvas e palavras.
1 — Pegue-se nas uvas depois de vindimadas e desengacem-se os bagos dos cachos antes de se esmagarem (o que, no caso das uvas, não é uma humilhação, antes o primeiro elogio). O desengace e o esmagamento são a etapa inicial da libertação das uvas — se bem tratadas, caminham para vinho; se destratadas, condenadas a vinagre.
Achem-se as palavras que habitam as ideias. Considerem-se apenas as que potenciem a surpresa do novo e calquem-se de sentimentos e sensações (as palavras, depois de apertadas, tendem a expandir-se em liberdade criativa). O achamento é sempre o primeiro degrau da escrita, antes mesmo de se saber qual o sentido da escadaria.
2 — Deixe-se o mosto sofrer, sem altas febres, em poucos dias. Na fermentação ganhará doçura, intensidade.
Não se obriguem as palavras ao compromisso definitivo, para que possam decidir até quanto pesarão para o seu dono, aliviadas (depois) para a literatura.
3 — Escorra-se o mosto para que o seu líquido repouse enriquecido do suor que outros mostos destilaram, em copiada água(ardente).
Decalquem-se as palavras até que satisfaçam o (minucioso) destilar dos copistas.
4 — Entregue-se o mosto à prensa, na certeza que o aperto lhe emprestará mais cor e aroma.
Emprestem-se as palavras (ou tomem-se emprestadas) para que as autorias (dadas ou tomadas) vivam (sem aperto) um momento de homenagem.
5 — Separe-se o vinho das indesejadas partículas, segundo a vontade da (trasfegadora) deusa do ar e do sabor que limpa a alma do vinho.
Recolham-se as palavras nas salas de inventar (ou descobrir) onde se depositam (todas) as partículas das almas dos autores.
6 — Amadureça-se o vinho (por velhice). Que os deuses do tempo lhe preservem (na repetição dos dias) aromas e cor.
Repitam-se (criativamente) as palavras à exaustão da escrita. O eco literário há de ganhar (no tempo) condição de teoria.
7 — Lote-se o vinho na (sábia) mistura dos sabores. Pequenos roubos que se elevam à condição dos grandes feitos.
Faça-se a revolução dos textos com as palavras roubadas às ideias. O roubo que antecede a redistribuição criativa sempre apadrinhou a novidade.
8 — Clarifique-se o vinho no refrigério da sombra, para que ganhe luz (cópia a cópia) quando dialoga connosco em cada taça.
Escrevam-se as palavras ditas através da arte da interpretação (criativa) para que ganhem luz em todas as sombras escondidas no papel.
9 — Encaderne-se (por fim) o precioso néctar, para que o descubramos no acaso (orientado) da sabedoria dos que leem as bebidas.
Engarrafem-se as palavras (todas) e lancem-se no mundo. Espere-se que o autor (inteligente) tenha sabido gerir o seu potencial criativo, a sua teimosia perseverante, e o seu olho de pintor, porque nem sempre se descobre (por acaso) o agradável de quem bebe as palavras.
Surpreendidos?
Fica por saber se com estes nove passos produziria bom vinho (nunca me facilitaram a matéria prima), mas sei que nos espelhados nove princípios da nossa La Part des Anges se conseguiram alguns livros bem acima da mediania.
Já perceberam: está a chegar a 6ª edição de FRONTEIRA — o Festival Literário de Castelo Branco e lembrei-me deste devaneio. Desculpem a ousadia.