Guilherme D'Oliveira Martins
LEMBRAR A “RENASCENÇA PORTUGUESA”…
«A Águia» e a «Renascença Portuguesa» foram uma placa giratória de influências que vamos encontrar em todo o século XX e no melhor dele, apesar das profundas heterogeneidades. Quando se fala de Leonardo Coimbra percebemos que há uma pulsão plural, que se manifesta sobremaneira no educador – para quem a cidadania exigia liberdade de espírito e capacidade criadora. Quando recordamos Pascoaes, temos perante nós o poeta intuitivo, sonhador e interrogador dos mitos. Quando lembramos Jaime Cortesão (talvez a grande sombra tutelar da «Renascença»), percebemos que a poesia e a cidadania se juntam à capacidade de compreender a História – em nome do enigma que o autor de «Fatores Democráticos na Formação de Portugal» procurou incessantemente responder com o franciscanismo e a terceira idade de Joaquim de Flora, em nome da marca civilizacional de um «humanismo universalista».
No dealbar do movimento, Pascoaes e Proença apresentaram duas leituras diversas, mas que devemos considerar complementares. Pascoaes fala de «provocar por todos os meios de que se serve a inteligência humana o aparecimento de novas forças morais orientadoras e educadoras do povo que sejam essencialmente lusitanas». Proença prefere «pôr a sociedade portuguesa em contacto com o mundo moderno, fazê-la interessar-se pelo que interessa aos homens lá de fora, dar-lhe o espírito atual, a cultura atual, sem perder nunca de vista, já se sabe, o ponto de vista racional e as condições, os recursos e os fins nacionais». São diferentes os dois pontos de vista, mas há uma nítida convergência – daí a palavra Renascença, como ato de reviver e de avançar. A síntese indicou-a Jaime Cortesão: «dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana». De facto, há uma ideia moderna de mobilizar energias, de fazer aparecer forças morais e educativas e de abrir a sociedade ao mundo moderno. É por isso mesmo que a «Renascença» segue as pisadas das tradições liberal e socializante da Geração de 70, relendo-as à luz das preocupações do novo século – e, nesse ponto, como bem viu o próprio Fernando Pessoa, em «A Nova Poesia Portuguesa» (publicado entre Abril e Novembro de 1912 em «A Águia»), Antero de Quental é símbolo da maturidade moderna, que será assumida em termos novíssimos pela geração que criará «Orpheu». E Leonardo Coimbra assume uma atitude igualmente dinâmica: “A Democracia não é um estado mas uma tendência; a Democracia não é o código das nossas liberdades, limitando a liberdade dos outros – a Democracia é um permanente esforço para uma melhor justiça e para uma mais completa liberdade, justiça arrancada por um mergulho até ao mais profundo do coração humano, liberdade procurada nos meandros do nosso ser interior, no ponto mais alto da nossa vida, lá nas cumeadas de alma onde se cruza com o branco luar da inteligência que indaga, o arrebol róseo e violeta da bondade uni-versalizante que a tudo e a todos quer cingir e amar”.
No domínio educativo, Leonardo Coimbra teve a maior importância, já que foi um dos membros dos governos republicanos que aperfeiçoou a reforma de 1911 de António José de Almeida, que João de Barros considerou ter sido descaracterizada. Superando tal limitação, a reforma de 10 de Maio de 1919 de Leonardo Coimbra consolidará e completará essa orientação – fundindo os ensinos primário elementar e complementar no ensino primário geral, qualificado como obrigatório, abrangendo 5 anos. Insista-se no pioneirismo da reforma de 1911 quanto à educação infantil, que viria a ser concretizada nos Jardins-Escola João de Deus, segundo o método lançado em 1876 por iniciativa privada, graças à ação do grande poeta, continuada por seu filho João de Deus Ramos. Se o ensino primário foi atentamente tratado, o ensino secundário (de cuja reforma foi encarregue Adolfo Coelho) foi subalternizado. Em 1918 ainda houve uma tentativa algo ambiciosa de reforma liceal no consulado sidonista com Alfredo de Magalhães, mas sem sucesso. Afinal, “os legisladores republicanos não tiveram, para com o ensino liceal, nenhum rasgo de audácia que de perto ou de longe equivalesse à reforma do ensino primário, embora boa parte desta não fosse além do desejo dos seus redatores” – no dizer de Rómulo de Carvalho. João Camoesas em 1923 ainda lançará a iniciativa de preparar o Estatuto da Educação Pública, para cuja elaboração convida Faria de Vasconcelos, pedagogo fundador da “Seara Nova”. O documento prevê: ensino infantil (dos 3 aos 6 anos), ensino primário, obrigatório, gratuito e em coeducação (dos 7 aos 12, com dois escalões de 3 anos cada) e grau secundário (dos 13 aos 16 anos). Haveria ainda quatro modalidades de educação especial: o curso especial do ensino secundário para acesso ao ensino superior (dos 17 aos 19 anos), o ensino técnico elementar (dos 13 aos 16 anos), o ensino técnico complementar (dos 17 aos 20 anos) e o ensino profissional. Jaime Cortesão dirá que é “não só o mais sério documento político emanado de um governo, dentro da República, como a primeira tentativa de reforma nacional orientada por um espírito democrático”. Também António Sérgio defenderá acaloradamente o documento (“Um dia a nação nos há-de julgar!”). Mas a queda do governo impossibilitou a sua concretização. Não é demais dizer, em suma, que o cidadão Leonardo Coimbra foi dos que mais corajosamente lançaram sementes à terra no sentido de tornar a democracia um lugar de encontro, de respeito, de liberdade e de justiça. Daí a sua atualidade!