Lopes Marcelo
CANCIONEIRO LOCAL VII - RIMANCES
A população rural das nossas aldeias e vilas, genuinamente solidária, sentia-se muito tocada e unida nas tragédias e infortúnios. Havia uma certa vocação para o drama e queda para a tragédia. Foram muitas as fontes populares que alimentaram o rio do romanceiro tradicional, destacando-se o rimance, também designado por fado do ceguinho.
O romanceiro destacou-se a partir do século XV, versando as gestas heróicas da nossa história. Contudo, nos séculos seguintes, passou a abranger romances de amor de reis, príncipes e princesas. No século XVIII, os temas dos rimances já incidiam sobre a vida do povo, os casos de amor e de desamor, as tragédias e os infortúnios do destino. Os poemas populares eram cantados por jograis nas feiras e nos palácios. Destacavam-se os músicos espontâneos cegos e os acompanhantes que andavam de terra em terra, cantando e pedindo, o que o povo designou por fado do ceguinho. Eram, também, chamadas de cantigas de literatura de cordel já que nas feiras e festas, para melhor divulgação, os folhetos eram pendurados ao longo de um cordel.
A acompanhar os ceguinhos destacou-se a guitarra portuguesa que teve a sua origem na cítara, também designada por qitara, termo de origem árabe que evoluiu para guitarra. A cítara, instrumento de cordas em forma de pera provém do instrumento musical medieval cítula, usado nas cantigas de escárnio e mal dizer dos séculos XIII e XIV.
No que o povo designou por fado do ceguinho se terá originado o fado como canção popular que ganhou notoriedade ao entrar nos salões nobres pela mão do Conde de Vimioso, em virtude dos seus amores pela cantora de fados, Severa (1840).
O fado tornou-se moda popular, entrou nos teatros de revista e enraízou-se nas ruas e tabernas de lisboa. Embora fosse cantado por todo o país nas festas e feiras, foi em Lisboa que se consagrou. O fado corrido, satírico e humorístico evoluiu no século XX para o fado artístico em que aos temas de inspiração popular se juntaram temas de poetas consagrados, tornando-se na canção nacional, recentemente reconhecido como património cultural imaterial da humanidade pela Unesco.
Na nossa região, nas feiras e nos mercados sobretudo nas sedes de concelho, até há algumas décadas ainda apareciam ceguinhos que cantavam os rimances, dedilhando a viola ou guitarra. Eram guiados por um acompanhante conhecido por contra-cego, que para além de acompanhar a cantoria, recolhia os donativos/esmolas e vendia os folhetos das letras e alguma banda desenhada que sublinhavam as mensagens populares. Divulga-se o rimance intitulado: ”Mário Fernandes Morais”
Mário Fernandes Morais
Vivia com seus pais
Era gente de dinheiro.
De filho era sózinho
Davam-lhe todo o carinho
Por ser o único herdeiro.
E na mesma freguesia
Outra família vivia
Com uma filha que era tudo.
Assim, a todo o momento,
Para tratar do casamento
Visitavam-se de amiúde.
Quando à mesa se sentava
O seu pai recomendava
Não cases com mulher pobre.
Procura mulher de bens
Com a fortuna que tens
Serás mais rico e mais nobre.
No dia do casamento
Um grande acompanhamento
P´ra ver o Mário querido.
Beatriz chegou à janela
Mário olhou para ela
Ficou todo comovido
Quando à igreja chegou
No altar se ajoelhou
A pensar na Beatriz.
Mas antes de estar casado
Dizendo estou arreloucado
Não quero a jura que fiz.
Quando no seu carro entrou
Depressa se encaminhou
Para a casa da Beatriz.
Mas quando lá chegou
Já a família chorava
A morte da infeliz.
Neste momento precário
Meteu pena o pobre Mário
Chorava como um perdido.
Ao corpo dela agarrado
Quando foram retirá-lo
Já tinha enlouquecido.
