16 de outubro de 2019

Maria de Lurdes Gouveia Barata
CRÓNICA DA AUSÊNCIA

O espelho está sobre a mesa na posição do costume. É redondo, metálico, com duas faces, uma muito apropriada para aumentar o tamanho do rosto reflectido e poder caçar algum pêlo atrevido do buço. Tem estrutura para ficar direito sobre a mesa, mas pego-lhe com a mão, tal como Ela fazia, e espreito o aspecto aumentado das rugas, e hoje as minhas parecem-me mais fundas. Agora os olhos caem-me sobre aquela caixa transparente que deixa descobrir colares de pérolas, um coração, um trevo de quatro folhas e um fiozinho dourado que segura o trevo – este Ela usava frequentemente, com o duplo afecto pela beleza e por ser oferta de uma grande amiga. Vejo o seu gesto a pô-lo no pescoço, a pedir ajuda com o fecho, a verificar o modo como ficava, exigindo a boa visibilidade daquele trevo, muito bonito, muito fino, muito atractivo com a moldura de pedrinhas brilhantes à volta. Aperto-lhe o fecho dentro do desejo do tamanho ideal de fio e Ela pega no espelho redondo e olha atentamente e sorri com aquele sorriso de aprovação que se torna doce. Ainda falta um lenço-écharpe a cair de cada lado, vou buscar-lhe o beige, que tem brilhos de estrelinhas. Vou buscá-lo e levanto-me. Mas levanto-me para quê?! Volto a sentar-me. Ela já não está ali, a sua presença física está só na minha memória, que se tornou um pouco alucinada com a transformação da sua presença-ausente numa presença real. Ria-se quando eu lhe dizia és muito vaidosa. Cada cor de peça de roupa tinha de condizer com a de outra peça. Isso já nem se usa, dizia eu, mas respondia sempre assim é que é bonito. Na contraluz da janela por detrás da sua cadeira o cabelo branco (fora uma grande ideia deixar de pintar o cabelo) um pouco encaracolado tinha breves cintilações prateadas de que eu gostava.
Chega a hora da refeição e o lugar está vazio. E eu sento-me no lugar dela e olho numa diferente perspectiva. Com a racionalidade que dá ter consciência da vida como efémera lembro o antes e vem-me à memória a «Ladainha dos Póstumos Natais» de David Mourão Ferreira: «Há-de vir um Natal e será o primeiro / em que se veja à mesa o meu lugar vazio // Há-de vir um Natal e será o primeiro / em que hão-de me lembrar de modo menos nítido (…)». Dos oito dísticos que compõem o poema, o último resume o passar da vida da humanidade: «Há-de vir um Natal e será o primeiro / em que o Nada retome a cor do Infinito» e tudo se dilui num macrocosmos em que esta vida terrena se vai dissolvendo… É tudo trabalho do Tempo. Tece tão rápido as rendas da vida que, quando se dá por isso, já estão velhas e gastas, puídas de uso como utilidade ou decoração. O Tempo e a sua passagem impressionante (não é por acaso que Miguel Torga abre o poema «Apocalipse» com os dois primeiros versos: « É o cavalo do tempo a galopar… / Ninguém pode detê-lo.», porque a corrida é realmente apocalíptica) vai realmente cavando ausências e esvaziando a presença de alguém que nem sempre é ausência vazia. «O Tempo e o Newsagent» de Rui Knopfli sempre me ficou na memória: o sujeito poético vai diariamente comprar jornais, revistas e tabaco ao Newsagent e apercebe-se dos rostos habituais e conhecidos que vão desaparecendo deste quotidiano de rotina – a Joyce, que se reformou e está em casa a fazer companhia ao periquito, o Mr. Frazier, que foi para um Lar da Terceira Idade por causa do Alzheimer, o Coronel Jones, que fez a sua partida e comanda agora um exército de sombras, o Ian Thomas, costureiro da Corte, «que tropeçou, ingloriamente, num by-pass da aorta» no inverno, a septuagenária, que «se passara discretamente» e outros desaparecidos de que se dá conta nas suas idas ao Newsagent, como também o sujeito poético se dá conta de que não tem passado nada bem, porque sobe a escada e tem pausa resfolegante. O Newsagent torna-se assim «registo implacável da passagem do tempo». A mudança é, por vezes, de repente. Como no «Soneto da Separação» de Vinicius de Moraes, de que transcrevo alguns versos:
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
(…)
De repente não mais que de repente
(…)
Fez-se do amigo próximo, distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente

Cada um de nós, no dia a dia, se vai apercebendo de ausências… A ausência dos que estão perto e amamos torna-se presença com os sentidos da alma que fazem ver e ouvir gestos, sons vozes…
Ela lia sempre antecipadamente os meus artigos e falava das suas impressões. Talvez Ela dissesse hoje escreveste coisas tristes com um sorriso. O sorriso da minha Mãe.

16/10/2019
 

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