Edição nº 1619 - 1 de janeiro de 2020

Carlos Semedo
FRAGMENTOS DE UM NATAL

As cabeças baixas dão o mote para o silêncio. Alguns bebem uma cerveja neste início de manhã. Entram bons dias sonoros e ouvem-se os sinos da Sé. Tenho de lá ir. Quase todos os anos o faço, nos últimos quero saber se já começaram as obras de recuperação deste magnífico relevo na paisagem. Entram dois homens que precisam urgentemente de um banho. São conhecidos de alguns dos clientes, trocam cumprimentos. Entretanto, a televisão começa o seu trabalho de preenchimento da falta de conversa, o silêncio assusta sempre. De vez em quando, passa um automóvel. O Café Alentejano está fechado, talvez porque seja feriado, dia de Natal, mas o mais gritante são os pequenos painéis que anunciam vende-se. Talvez alguém faça daquele espaço uma hamburgueria famosa. Talvez sim, mas quase de certeza que não, pois “o sonho antigo dos portalegrenses” já se cumpriu. A famosa hamburgueria americana já abriu, curiosamente mesmo ao lado do local onde havia uma venda. Era assim que chamávamos ao sítio, com uma mercearia e tasca de balcão demasiado alto para a minha idade. Triste a sina deste país, quando a medida evolutiva também passa por coisas deste calibre. Lembro-me que em Castelo Branco aconteceu a mesma coisa. Para alguns, passou a ser uma cidade quando inaugurou a famosa hamburgueria.
Na Sé as obras ainda não começaram. As primeiras pessoas chegam e sentam-se em silêncio. Duas senhoras, que devem fazer parte do coro, acomodam-se quase na primeira fila e põem a conversa em dia. Por vezes, falam ao ouvido, só falta mesmo olhar para trás, para verificar se não escapam confidências para a parca plateia. Repentinamente, a luz surge poderosa e é como se uma vida nova entrasse pelos vitrais. Alguns dos altares ganham brilho e as pinturas do topo destacam-se, contando as suas histórias sagradas. Mais pessoas chegam e sentam-se. Algumas, primeiro ajoelham-se e rezam. A luz, aparentemente, veio para ficar e as senhoras do coro continuam a sua conversa indiferentes a esta mudança. Talvez nem tenham dado conta, tão atarefadas que estão. Saio bem antes da celebração.
A antiga lixeira a céu aberto é, agora, um espaço naturalmente verde. Fica mesmo ao lado do cemitério. Neste morro parece que ninguém teve coragem de mexer. Será por causa da contaminação? Será útil como barreira natural que afasta o cemitério da visão de quem vive nos prédios entretanto construídos na sua base? Saberão as pessoas que aí mesmo, havia um espaço que foi campo de futebol e sítio de sonhos de infância? Sim, nesse local que agora é parque de estacionamento. Um pouco mais acima, dois ou três barracões eram habitados. Na minha leitura infantil, tratava-se dos guardiões do lixo, que caía pela ribanceira abaixo. Destaca-se ainda a vereda por mim tantas vezes utilizada na vertigem da velocidade, quase pássaro, com que a descia. Está coberta de vegetação, mas ainda se nota o seu sinuoso percurso.
No meu cartão de cidadão, aparece como local de nascimento Assumar, uma vila do norte alentejano conhecida pelas largadas de touros e pelo curandeiro que aí atraía gente de todo o lado. Conta-se que a própria Amália Rodrigues a ele recorreu. Foi no Assumar que aprendi os segredos dos aromas e sabores ligados a uma padaria. Nas épocas festivas o forno transformava-se em comunitário e era um festival de novos aromas. Foi também aqui nesta pequena vila que soube o que é um tremor de terra. Neste dia de Natal, encontrei um velho amigo do meu pai, colegas da equipa de futebol do Sporting Clube Assumarense, ali pelo final dos anos cinquenta do século passado. Na sede, expostas algumas fotos e numa delas, a equipa onde estão os dois, célebres ficaram um 4-0 e, mais ainda, um 9-0. O meu pai, atacante e goleador e o amigo, um notável defesa central. No meu cartão de cidadão, aparece Assumar, terra do meu pai, pertencendo ao concelho de Monforte, terra da minha mãe. Nasci na cidade, mas o facto de o registo ser Assumar, lembra-me o quanto aprendi naquele sítio onde encontrei não um madeiro mas três, todos próximos de um café. Sinais dos tempos.

01/01/2020
 

Outros Artigos

Em Agenda

 
29/05 a 12/10
Castanheira Retrospetiva Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco

Gala Troféu Gazeta Atletismo 2023

Castelo Branco nos Açores

Video