Antonieta Garcia
SALDOS
Eis a Palavra mágica a pretender reconciliar euros e compras. Assoma, agora, o palpite: com um bocado de sorte, vou comprar umas coisitas que ando a namorar há meses…
Nas vitrinas, anunciam-se pechinchas. Descontos de 50%? É muito! Vale entrar e escolher enquanto é tempo! No contexto em que vivemos, uns de carteiras recheadas compram tudo antes do Natal; não precisam de fazer contas à vida e refinados escolhem o que lhes dá na real gana; outros aguardam, aguardam, aguardam e os malandros dos saldos nunca atinam com o valor que convém a bolsas pequenas e médias. Há sempre compras em espera!
Quem vende, descobriu, entretanto, para iludir clientes e fiscais um vocábulo de três letrinhas apenas, escrito em carateres pequenininhos que, nas vitrinas, informa: Saldos! Tudo a 50% até…
Não há óculos com dioptrias suficientes para ler a palavrinha que, saltitante, se encontra situada o mais estranhamente possível, relativamente a outros esclarecimentos.
“Até!”. Eis o Verbo a estragar ilusões.
E nem vou entrar na dissertação gramatical sobre “até”! No caso dos saldos é preposição e significa limite no tempo, no espaço, na quantidade? Ora, até que enfim que nos entendemos. Neste caso, nem se levanta a hipótese de, como advérbio, apontar para inclusão, sem exceção, também, como na frase: Vale tudo “até” tirar olhos…
Nas lojas, este “até” dos saldos não é inclusivo e tira-nos do sério. Numa arrumação janota, os lojistas distribuem, como só eles sabem, descontos desde os dez por cento, para peças de jeito, até aos 50% destinados a pé de pobre a que qualquer sapato serve.
Até à data, o “até” vaidoso que segue os saldos nas vitrinas – engana-me que eu gosto! – obriga a pecar. Os saldos desocultam muitas astúcia, manhosice, falsidade. E perante os ditos, pecam todos os saldófilos. Por pensamentos, por palavras e por obras. Bem sei que as obras são para espíritos guerreiros; quem nasceu pacifista omite, com maior ou menor esforço, a vontade de pôr a careca à mostra do vendedor. Para as palavras de protesto escolhem-se as de low profile, silenciam-se as injuriosas, ofensivas e, humanamente, somos capazes de perdoar até aos que sabem ser caixeiros e jamais fecham a loja. Os pensamentos colocam problemas mais sérios. Como arreatá-los? Saltam todas as grades, desabam muros, substituem-se… Todavia, quando menos se espera, ocupam de novo os neurónios. Escondemo-los, abrandamos a vigilância e os malandros dos pensamentos escapam, voam para sítios indizíveis. Dizem coisas que nunca pensámos/ousámos ouvir…. Conseguimos, porém, silenciá-los. Se tivessem voz e se se escutassem seria um Deus nos acuda…. Insultos mentais, desejos ocultos, malfeitorias teóricas, pancadarias até vir a mulher da fava rica… criariam infernos que exorcizamos.
Aconselhava um estilista de primeira água a uma amiga: - Tu não compres isso. Todos vão dizer que te vestes nos saldos!!!
Que pecado é este? Qual o foro?
É muito complexo definir se uma transgressão pecaminosa se situa no foro do pensamento, da palavra, ou da obra. A gula é pecado mortal? Mas o que se come, se desejado, não desanuvia a cabeça e pode até curar maleitas? Até! Numa noite bem dormida, porque se comeu bem, vale a obra, a palavra e até o pensamento.
Certo é que pecadores eméritos da palavra escrita e das obras, os malandros dos saldos “até” enjoam. Já os pensamentos que a elite avança para maldizer os saldos… que vão para o Diabo que os carregue. A mim, a si e aos que, quando puxam os cordões à bolsa, fazem contas de somar e de sumir… não nos deixeis cair em tentação…