Edição nº 1625 - 12 de fevereiro de 2020

José Dias Pires
ESCREVER SEM FINGIR QUE SE ESCREVE

Dei comigo a interrogar-me: aqueles que escrevemos nos veículos de papel (jornais e livros), escrevemos porquê? Escrevemos para quê? Escrevemos para quem?
As respostas não são fáceis e pouco têm de óbvias: escrevemos porque há em nós um impulso interior que leva a isso, ou porque alguém nos convida e porque temos (ou devíamos ter) algo para dizer ou contar que valha a pena? Escrevemos (ou devíamos escrever) para esclarecer e não para confundir? Escrevemos para quem acredita que a palavra escrita ainda é indispensável para a comunicação, o debate e o contraditório de ideias?
E o que será que nos continua a motivar para a escrita, nestes tempos que tão mal tratam as palavras?
Será a Cidade das Dúvidas, onde, para não partir para a escrita cheios de certezas absolutas e convencimentos, todos devíamos habitar para salvaguardar as convicções e os valores?
Será a Estante dos Pensamentos, na qual podemos encontrar a motivação para ler (bem e muito) e escrever (na mesma proporção), porque a leitura e a escrita são instrumentos dos quais não se pode prescindir para construir a estante onde se arrumam (depois de catalogados) os pensamentos?
Será saber aguardar pelo lugar onde moram o silêncio, a calma e a feitiçaria das palavras — um mundo para descobrir onde apenas conseguem chegar a «alma dos escritores» ou os «escritores com alma»?
Será transformar as ideias em temas? A informação em notícia? A reflexão em comentário?
Hoje em dia, a competição desenfreada para se ser mais lido, não ajuda, e até dificulta, o fechar da porta, quando se escreve, para a escancarar depois.
Cada vez menos se aprende que escrever é um trabalho solitário, mas não silencioso; e de credos, mas não religioso (ter quem acredite em nós faz uma grande diferença); e que, para se ser escritor (de notícias ou textos literários), se deve saber previamente tudo o que se puder sobre os animais e as pessoas, e os nomes das árvores e das flores, e das ervas daninhas, e ainda, pelo menos, uma das velhas magias do Livro das Mutações: a magia da escrita que são os lugares, os amores, os frios, a solidão, a ignorância que é, dizem, a mais tranquila das sabedorias — onde os lugares fazem esquina com a escrita, pois é do outro lado que se encontram as pessoas, os jornais e os livros.
Será que os que escrevemos nos veículos de papel (jornais e livros) somos sempre mais leitores que escribas? Isto é, primeiro, leitores de todas as conversas, de todos os sons (importante a música) aprendendo a ouvir e a ver (ouver); depois, leitores de todas as imagens: das artes plásticas à natureza, e por fim, enriquecer o que se ouviu e viu lendo ainda mais antes de escrever e depois ler bem o que se escreveu.
E quando, por distração ou não, secamos as fontes? Na verdade só damos valor à água quando se secam as fontes. Creio que será bom transportar esse princípio para a escrita.
Explico: a palavra escrita é sempre uma palavra roubada, que se desenvolve numa espiral de apropriação que começa na conversa ouvida, na música escutada, na imagem vista e passa pelo livro lido, para voltar à conversa, retomar a música, o livro, e assim sucessivamente até que se constitua o vazio da primeira palavra.
Fica a faltar a Promessa Final: o vazio será preenchido pelo leitor (quando existe) que escreve, recria, e cujos sinais não querem pertencer ao universo mentiroso das frases vazias e das ideias roubadas que não lhe envelheceram (bem) nas mãos e na alma.
Mas é fundamental o seguinte:
Primeiro — o exercício de eco: ouvir e repetir.
Depois — começar-se a escolher alguma coisa entre tudo o que se ouve.
Por fim — identificar-se, com antecipação, as fontes e as partes, e caminhar-se confiante (quase sabedor) para a sua usurpação, criativa ou não — mas consciente.
Neste delicado exercício há sempre duas vozes principais:
— A que aciona (na primeira pessoa) a narração; que comenta, pondera e executa a narrativa a descobrir.
— A que rememora e reescreve os factos e as personagens, numa descoberta do que não se descobriu, e num mundo imaginado que não se concretizou, mas que podia servir o livro maior das estórias fingidas — o Livro das Mutações.
Ao caminhar entre o narrador e o criador de narrativas, a longevidade do roubo (das ideias) antecipa o extraordinário silêncio da criação, mesmo que não literária.
Momento final — a avaliação — o Extraordinário Silêncio.
É a metáfora da Maré Vazia. Do mar que baixa para deixar, num imenso areal molhado (que promete todas as construções), os despojos da água que ficou na timidez da maré baixa.
Afinal é na maré vazia que o coro do mar nos conforta com o seu concerto do silêncio. Extraordinário silêncio (diga-se) onde não há vento nem ondas, ou, havendo, se deseja apenas uma suave maresia que se respira para limpar todas as angústias.
Para quem escreve é o lugar onde a (boa) consciência descansa.
Para quem finge que escreve é o lugar do vazio, mesmo que cheio de palavras.

12/02/2020
 

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