Antonieta Garcia
HOMEM DA BEIRA…
Os provérbios servem para certificar tudo; mostram a “cara e coroa” de qualquer assunto. Não será por acaso que “O trabalho não azeda” ou “O que se não faz neste dia, faz-se no dia de Santa Luzia” vivem em união de facto com “Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje”.
Criações populares? Nem sempre. Por exemplo, a máxima “O olho do dono engorda o cavalo” defende-a o possuidor do bicho; na frase, “trota” um muar metafórico denunciador da ganância do presumível autor. Em, “Ao Diabo e à mulher nunca falta que fazer”, pode raiar o elogio (pouco comum!) ao género feminino. Muito trabalha a mulher! A coligação com o Diabo são outras narrativas.
Rifões há que destratam comunidades inteiras. Da gente do Fundão diz-se o que Maomé não disse do toucinho: “Se fores ao Fundão, leva comer para ti e para os que lá estão…”! Olhos enviesados, palavras loucas, orelhas moucas. Observam os mesmos cânones: “Algarvios, ilhéus e cães de caça é tudo a mesma raça: falsos, famintos e fanfarrões!”. “Em Viseu, cão sim, homem não!” E os da Covilhã são lãzudos, os de Alpedrinha, manilhas, os de… Ou seja, a troca de galhardetes é volumosa, alguns provérbios serão de criação popular, noutros há um quê de cultura letrada…
Tudo isto veio à memória a propósito do texto provocador: “Homem da Beira e besta muar sempre tem coices para dar”. Pela amplitude dos atingidos? Duas ou três palavras igualmente descorteses rematavam a catarse? Desnudem-se as palavras.
Na verdade, todos sabemos que o beirão, como qualquer criatura de qualquer lado, acumula qualidades, defeitos… e tem dias. É intolerável o hábito de colocar uma etiqueta num grupo humano, meter todos no mesmo saco e caluniar, censurar, escarnecer... Então, o “Homem da Beira” conta-se aos milhares e são todos iguais?! Alguém, ferido de asa, encontrou rima barata, autopromoveu-se a filósofo e decidiu fustigar o beirão. A xenofobia, mau-feitio, sacrificou a realidade, o autor agarrou-se de alma e coração ao dito, repetiu-o, registou-o e perdeu-se. Como sói acontecer com aforismos deste cariz. Neste caso, a aliança do beirão com “besta muar” assanha e apouca. Por palavras, pensamentos e obras se há de ter abrasado a diatribe entre os contendores. Já o “coice” é uma defesa. Fere com maior ou menor gravidade. Ora, o homem da Beira rendeu-se às boas práticas, há décadas! Raramente o sabemos protagonista de rixas. O coice da máxima é metafórico e não tem pés nem cabeça…
De resto, entre as muitas espécies de beirões, o camponês serrano é, tendencialmente, o batalhador de chãos desamparados, esquecidos. E não sei que destino se enrolou ao pescoço deste território; desde sempre, a história mostra poderosos – salvo raras e honrosas exceções – a subestimar gentes, a tolher iniciativas, empobrecendo, ignorando, sacrificando os que não desistem de aqui viver…
Num entorpecimento de séculos, alguns beirões vergaram. A maioria desenvencilhou-se como pode e foi resistindo, compondo e desocultando hinos de louvor à terra mãe. O beirão é, dominantemente, homem de paciência. Até quando suportará o desamor de lisboas a estas terras? E se, de repente, começa a desenxovalhar-se?
O provérbio transcrito foi traçado com olho enviesado, palavras cruéis e ponderação obtusa. O retrato do beirão ficou desfocado. O “coice” é um movimento de defesa, sem dúvida. E se o homem da Beira modernizasse, tecnologizasse o “coice” e se manifestasse com a alma que tem?!!!