Antonieta Garcia
ABRIL
Há 46 anos, fiquei irremediavelmente enamorada, cativa de abril. Desde 1974, que o festejo, o celebro, cantando a vitória da liberdade, uma senhora que tanto prezo. Bem sei que a vida hoje se arrasta numa quarentena que desafia a paciência dos mais pacientes, culpa de um virulento traiçoeiro que se intrometeu no mais lindo mês português. A festa vai ressentir-se. Ainda assim, somos muitos os que, a 25 de abril, vamos louvar, de novo, os encantos, o fascínio de ser livre. Este ano, a alegria/fraternidade irmãs do companheirismo, ficam em casa. Mas ninguém impede que poemas, canções, sonhos e memórias se soltem e venham morar na casa de cada um.
Por mim, já escolhi as flores. Hei comprar cravos vermelhos, para “abrilar” o espaço familiar; porei, também, esta flor ao peito, como acontece todos os anos. O cravo casou com a revolução por amor. Ouço Eugénio de Andrade:
Tinha um cravo no meu balcão;// Veio um rapaz e pediu-mo// - mãe, dou-lho ou não? (…)//.
A donzela deu-lhe o cravo, deu-lhe o lenço de namorados que bordara, e depois o coração… Com autorização da mãe??? Melhor assim.
Afinal, abril é tempo de primavera, de faunos. Aquilino Ribeiro conhecia-os. Eram “sensuais, arteiros e tunantes”, em quem “Eros vibra… filhos de Pã e das deusas…” Em suma, gente jovem, endiabrada que (en)canta assim a bailia do amor: Bailemos nós já todas três, ai amigas, / so aquestas avelaneiras frolidas, / e quem for velida, como nós, velidas, / se amigo amar, / so aquestas avelaneiras frolidas / verrá bailar. (…) Por Deus, ai amigas, mentr’al nom fazemos, / so aqueste ramo frolido bailemos,,/ e quem bem parecer, como nós parecemos /, se amigo amar, /so aqueste ramo… verrá bailar.
Zeca Afonso fez renascer a bailia do trovador Airas Nunes. É o baile, ontem como hoje, espaço de encontro e sedução. A cumplicidade existe entre as raparigas belas e apaixonadas…. Debaixo das avelaneiras, ou das cerejeiras em flor, símbolo do feminino, da beleza, da juventude e fecundidade, festejavam, desde remotos tempos, a primavera, a paixão. Vivam os cravos, as “raparigas do país de abril”, como vaticinou Manuel Alegre:
E sou metade camponês metade marinheiro
Apascento meus sonhos iço as velas
sobre o teu corpo que de certo modo
é um país marítimo com árvores no meio. //
Tu és meu vinho. Tu és meu pão.
Guitarra e fruta. Melodia.
A mesma melodia destas noites
enlouquecidas pela brisa no País de Abril.
Aqui, em abril já soam, nas romarias, estribilhos de liberdade e de paz ditos por mil adufes que saltam livres nas mãos das mulheres; cheiram a louro, hortelã, orégãos, serpão, coentros, segurelha, maçãs.... Neste chão bendito, tecem pactos de renascimento com a terra mãe. O cravo vermelho, flor de abril, companheiro, comunga a festa da primavera, a festa da liberdade. É flor sagrada do abril português.
Tresmalharam-se sonhos? Ora, abracemos Zeca Afonso, cantemos a Grândola, recriemos a utopia imensurável do sentir e querer franciscanos, pacifistas, humanistas...
Quarenta e seis anos volvidos, ensarilharam-se melancolia e pesares; contam-se muitos viciados em dinheiro fácil, que não desistem de vender a alma ao diabo. O tempo acelerou doidamente… O vírus obrigou a parar. Agora é tempo para refletir, para perceber que as luzes que abril alvorou ainda estão semeadas em cada esquina e brilham em dias de muito sol ou de luar…. Olhem o chão tão bonito, quando chega abril…