Edição nº 1636 - 29 de abril de 2020

Carlos Semedo
SURF RODEADO DE MONTES E SERRAS

Nunca surfei na minha vida. Sim, surfar, uma prancha, ondas no mar. Apesar desta constatação, o Surf faz parte dos meus interesses, em crescendo nos últimos anos. Tal como acontece com muita gente, as ondas do mar sempre me fascinaram, quando na minha infância e adolescência estava perto do mar. Aquilo que me parecia ser a sua inconstância, imprevisibilidade, força, atemorizava-me e, ao mesmo tempo, seduzia-me. Penso que nunca tive medo de água e os largos minutos que passava no mar, a nadar, parecem confirmar esta memória. Quando agora me deixo ficar a ver a ondulação, dominado pelas pequenas variações e pelo som, sinto o eco desse tempo, que não foi infeliz. A presença do Surf na Costa da Caparica, S. Pedro de Moel, nas zonas que frequentei o Algarve e em Vila Nova de Milfontes, ou era insignificante ou não me cativou o suficiente, para que eu tenha memórias que emirjam de forma clara. Numa determinada fase sei que a razão desta invisibilidade poderá ser as muitas horas que passava a ler, o que remetia para uma paisagem sonora, entrecortada com as brincadeiras habituais e as sessões de natação.
O Surf entrou com alguma potência na minha vida, quando uma palavra estranha (ainda hoje a sinto assim) se apresentou numa das férias na Figueira da Foz. Cabedelo significa pequena elevação de areia, na foz de um rio, formada por acumulação de sedimentos fluviais e marinhos. Do latim capittello, diminutivo de caput, cabeça de agulha ou capitel de coluna. Foi na praia do Cabedelo que comecei a observar surfistas, a aprender as suas rotinas e, quando a minha filha começou a ter aulas, a conhecer um pouco melhor os aspectos técnicos e artísticos. Gradualmente fui acompanhando as diversas variantes e passando a conhecer melhor os seus intérpretes e as especificidades. Como o vídeo tem acompanhado cada vez mais em termos de proximidade, novos planos e qualidade ao nível da produção e da definição, estar sentado no sofá e assistir a qualquer competição é uma experiência e tanto. Claro, não é a mesma coisa que poder estar na praia e acompanhar, sentindo o vento, os cheiros e a vibração do espectáculo, mas permite uma proximidade, impossível quando se está no local. Comecei a interessar-me pelas entrevistas e programas com surfistas e fui, de mente aberta, entranhando-me o mais possível neste mundo. A distância e a falta de ser um praticante, faz com que possa ter uma percepção algo ingénua do fenómeno, mas vou tentando aproveitar as vantagens da distância crítica.
Mas como escrever neste tempo de coronavírus fugindo a esta realidade avassaladora? Acreditem que quando pensava em pistas para o que pode ou deveria emergir quando as fases mais críticas da pandemia passarem, lembrei-me dos surfistas. Há na prática do Surf, um conjunto de características que são faróis possíveis para este enigma pós pandémico. Uma das dimensões é a forte ligação com o mundo natural. O Antropoceno gerou uma ideia absurda de que é possível o Homem dominar e controlar todos os factores que geram o equilíbrio e a sustentabilidade. O surfista sabe que não, precisa de conhecer e respeitar a condição natural da onda, os ciclos, precisa de observar e ler todas as informações que o mar lhe fornece. A primeira condição é o respeito, só possível pela escuta ampla.
Outra dimensão é a relação com o tempo. O surfista não consegue impor a sua vontade ao mar. Precisa de cultivar a paciência – essa escultora do respeito pelo outro – e, quando estão em sintonia, surgem todas as variações métricas, rítmicas, de força e vibração. Muitas vezes, quando vejo entrevistas com surfistas, sinto emergir o ensinamento da paciência que contamina a vida.
O Surf é uma actividade de risco e o seu grau depende muito do conhecimento que o praticante tem da zona onde vai surfar, do estado do tempo e, claro, da sua capacidade técnica. Há, no entanto, um factor determinante: o surfista precisa ter consciência da necessidade de uma total disponibilidade mental e física para o momento. Tudo o que poderá viver no futuro imediato, com mais ou menos intensidade, dependerá desta entrega no presente. Também este é uma pista para o futuro que se avizinha.
Finalmente, um certo sentido de frugalidade que se pode aprender através do Surf. Numa dimensão, a constatação de que a onda não é minha, é de todos. Numa outra face, o aprender o contentamento – a suficiência – com as ondas que acontecem naquele momento concreto. Um dos dramas da sociedade contemporânea é esta espiral de descontentamento – uma roda de hamster – que sugere como única saída a acumulação (de experiências, objectos, dinheiro, etc). O Surf ensina a possibilidade da frugalidade, do “tenho o suficiente”.
Agora, que o confinamento não é uma curiosidade, uma experiência fugaz, mas sim uma realidade que nos coloca perante o sentido de crise, o Surf oferece-me algumas pistas para pensar o futuro.
Dedico este texto à Lena e à Patrícia. Elas sabem porquê.

29/04/2020
 

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