Edição nº 1638 - 13 de maio de 2020

Antonieta Garcia
OS VELHOS E A COVID-19

Ser velho é uma maçada; não chegar a velho é uma infelicidade. Gente nova não pode, não se deseja que, antes do tempo, entregue “a alma ao Criador”. Há filhos, há juventude e muita vida para fruir. Uma sabedoria assente na tradição e percentagens decreta que assim deve ser. Estas razões (e outras) sobejam para justificar que mais vale a presumível estopada de ser velho do que a desdita de não chegar lá!
Foi a Covid-19, essa vadia, que recolocou estas questões, em cima da cabecinha de cada um. O despudor soltou amarras, desde que um deputado designou como “peste grisalha” os reformados… Argumentava que as pensões que auferem, custam ao Estado milhões de euros, sem proveito nenhum para a sociedade!!! Nestes “mimos” aos idosos também cabem frases como:
- Os do 25 de Abril nunca mais morrem! – (Violenta, hem?)
- Estou à espera que se reforme! O seu lugar fica vago e depois é para mim! – (Virulenta, não é? Descartam-se e deitam-se fora?)
Eu sou do 25 de Abril e preencho outros critérios de velhice: setentas, reformada…
Ora, neste contexto, não nos faltava mais nada, que este mutante coronavírus se intrometesse na narrativa e caísse de amores pelos velhos. Abriu portas a bocas tresandando a crueldade, cuja moralidade de plástico, sintética, assusta:
- Os idosos vivem demais, estragam a economia! Estão a tirar o emprego aos jovens. Há um comprimido…
É uma chatice ser velho…
Por isto, em tempo de clausura sem fim à vista…há dias em que insidiosas ideias que se intrometem onde não são chamadas: - Que vida é esta? Sem estar com filhos, netos, amigos… Viver para estar em casa? Quanto tempo mais para aguardar…
- Psst! Psst! Então menina? Vamos lá mudar o disco… Era o que faltava engordar o vício da depressão…
Aí expulso as tristes ideias tristes, desativo-as, amachuco-as, aplico-lhes um safanão. Inicio uma caminhada, em passo estugado, da sala para os quartos, viro para a cozinha, passo ao salão e vice-versa. Entretanto, acuso-me, insulto-me, ralho-me: Alto menina! Esta não é a hora de pensamentos enviesados! De contente te dói um dente…
Na verdade, há sempre infernos piores. Garanto: se eu pudesse esganava a Covid-19 e companheiros bárbaros. Não posso. Assim, avizinho-me do bom senso, apelo à corte celestial, à ciência: Venha a vacina! Despachem-se!
Fico melhor. Dois episódios, para ilustrar:
I – Há um mês, encontrei-me com um antigo aluno. Diz-me:
- Gosto tanto de a ver assim… direitinha!
O vocábulo “direitinha” demorou a ser pronunciado. Fez contas: eu fora sua professora, ele já é avô… Aí, hesitou, na qualificação, até surgir triunfante, verdadeira e esplendorosa a palavra: “direitinha”. Soou-me a afeto.
II – Outro dia, mudei de telemóvel. Detentora de uma infoexclusão galopante, pedi à senhora da loja para colocar no novo aparelho, o cartão do antigo; pretendia salvar todas as informações. Quando fui ver, tinha perdido uma série de contactos. Desloquei-me de novo à “especialista”, e queixei-me:
- Não resultou!
- Desculpe, vi a idade da senhora, julguei que os contactos estavam todos no cartão!
Embrulhei a frase num “miminho” e confirmei: - A idade é uma chatice!
Em suma, quem tinha razão era a minha avó Sara, mulher franzina, mas determinada, cheia de energia. Um dia, perguntaram-lhe a idade. Esclareceu:
- Mais de noventa!
- Mais de noventa!? Já é castigo! – comentou a criatura.
Sábia, a minha avó foi-se à ponta da língua e rematou:
- Olhe, Nosso Senhor o não castigue!
É uma maçada ser velho? Pior é a desventura de partir cedo demais. Cuidem-se. Podemos construir uma vida tão bela…

13/05/2020
 

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