Maria de Lurdes Gouveia Barata
MOMENTOS DOS DIAS DO VÍRUS
Estou no dentista. A sala de espera é pequena e estou sozinha. De máscara. Na parede em frente, branca, está um único quadro: uma rosa alvíssima com viço de esplendor sobre alguns seixos cinzentos e secos. O quadro tem moldura branca e fica um branco frio no despido da sala. A parede à minha esquerda é lilás claro, tem uma borboleta rendada e branca. Poucas cadeiras. Mesa vazia de revistas como recomendado. Persiana corrida, deixando passar pouca luz. A minha máscara é branca, mas tem estrelas azuis e vermelhas. Não as olho porque está na cara e não há espelhos. O branco, o quadro branco com a rosa branca sobre os seixos trazem-me à memória outro branco sujo de fundo com figuras geométricas do programa Circulatura do Quadrado. Que parvoíce, do que me havia de lembrar! É que quando vejo o programa, que aprecio, o branco sujo do cenário é atravessado por setas negras em movimento. Só há pouco tempo dei por isso, que eram setas, porque indirectamente as apercebia, visto que o olhar directo era sobre os rostos dos intervenientes. As setas negras pareciam-me baratas a passar e irritam-me. O nosso olhar pode ser muito enganador… Nunca mais me chamam e logo havia de me lembrar destas associações parvas. A solidão e o silêncio pesam-me nos olhos. É um momento de um dos dias do vírus. E ponho-me a pensar no facto de me sentir uma figurante contratada para participar no filme de ficção científica que parece desenrolar-se nos dias do vírus. Ah! É a minha vez de entrar! Ainda bem!
Vou agora continuar depois dos momentos no dentista. Sorrio por dentro. Agora já estou no barulho da televisão, em casa, após atravessar ruas com mascarados, por causa desse tal vírus que parou o mundo inteiro, melhor dito parou o planeta Terra. E não há nenhum outro planeta para nos mudarmos… A ganância e estupidez do homem pagam-se caro.
Passam imagens de mascarados de todos os países em todos os canais de TV. Agora é o Bolsonaro, o daquelas frases idiotas próprias de um ignorante e de um débil mental. Desprezível quando questionado sobre o número de mortes no Brasil e responde «eu não sou coveiro» ou, mais tarde, «muitas mortes? mas é o destino de todos!». Além de irritação, provoca-me um nervoso miudinho, de revolta interrogativa «como é possível ter sido eleito?» Cada vez que vejo este, associo-lhe logo o outro, o Donaldinho Trump, que parece saído dum livro de aventuras em banda desenhada, jactante, ignorante, impante de mentiras e contradições, furioso perante as perguntas dos jornalistas. Os dias do vírus fizeram explodir revelações de homens de poder tão medíocres!
Francamente! Estão novamente a passar aquela imagem de George Floyd (que ecoa bem fundo em nós) com a patorra do polícia no pescoço, implorando «please, I can’t breathe»… Com efeito, não podemos respirar perante a crueldade dos homens. A violência dos protestos – protestos devidos e justos – desencadeiam em muita gente o repúdio pela destruição de bens de quem não tem culpa, é a velha questão de «paga o justo pelo pecador», embora não seja tão generalizado como o Donald diz e lhe convém dizer para justificar a hipótese de militares na rua para dominar aqueles terroristas… Talvez lhe convenha uma guerra civil para desviar as atenções de tão má gestão do problema da pandemia nos Estados Unidos.
Pus-me a escrever tudo isto ao correr da pena sobre momentos pouco animadores dos dias do vírus. Porém, sou uma optimista por feitio e crença nos sorrisos da Natureza, nas acções solidárias dos homens, nas histórias compensadoras da fraternidade. E ponho-me a pensar no mar, lá longe, sempre a chamar por mim…