Maria de Lurdes Gouveia Barata
MALES HUMANOS
Agora que ainda estamos meio confinados, e um tanto habituados ao confinamento anterior, duro por ser praticamente quase total, ouvimos mais frequentemente as notícias dos vários canais televisivos. Ponho-me às vezes a pensar como as notícias são negativas e distribuem os males dos homens nos contextos em que se movimentam. Não falo apenas do que se pronuncia sobre a Covid-19, isso está sempre presente e tem o poder de continuar a inquietar-nos, mesmo se já não estamos naquela de seguir tudo, fazendo zapping por vários canais, como aconteceu no início. Mas a inquietação continua e ainda me surpreendo e atormento com muitas das notícias Covid-19. Mesmo agora, já noite dentro, parei de escrever para ouvir que no Brasil continua a chocante mortalidade – em vinte e quatro horas foram mais de 1000 mortos e 42000 novos infectados. E é o segundo país nesta desgraça, que o primeiro é o do Donald Trump (claro que um país é de todos os que o integram, mas a gestão da pandemia por este presidente faz dos Estados Unidos um país à Donald…).
No entanto, quando comecei a escrever e falei da negatividade que nos traz tudo o que é mau, estava a pensar na tragédia dos homens, seja pela sua crueldade, seja pelo seu fingimento e cinismo em prol de interesses pessoais, egoístas. Parece que não há dia nenhum em que não sejamos informados de crimes repugnantes, que parecem ter-se tornado acontecimentos quotidianos, crimes de filhos que maltratam e matam pais, crimes de pais que maltratam e matam filhos, que neste nível de parentalidade arrepiam o coração e baralham o intelecto.
As relações entre as pessoas degradaram-se, a desconfiança instalou-se pelo hábito de ouvir falar de tanto mal, o medo alastrou e desencadeou atitudes que nos levam a sentimentos de falta de liberdade. Lembro-me de no final do século XX ler um artigo, penso que era de Edgar Morin ou de Chomsky – não tenho a certeza – em que se dizia que o mundo se ia encher de homens inquietos no século XXI e iriam fazer muita falta os psiquiatras e os psicólogos. Falei de crueldade e recordei Edgar Morin (in Os Meus Demónios): «Nascemos na crueldade do mundo e da vida, a que acrescentámos a crueldade do ser humano e a crueldade da sociedade humana. (…) A crueldade entre homens, indivíduos, grupos, etnias, religiões, raças é aterradora. O ser humano contém em si um ruído de monstros que liberta em todas as ocasiões favoráveis. O ódio desencadeia-se por um pequeno nada, por um esquecimento, pela sorte de outrem, por um favor que se julga perdido. (…) O egoísmo, o desprezo, a indiferença, a desatenção agravam por todo o lado e sem tréguas a crueldade do mundo humano».
Entre o verdadeiro e o falso e a dúvida, alguns escolhem sempre o pior que lhes permita transformar em maléfico o que se apresenta com interrogações e suspeição, para ferir e julgar com prazer sádico um outro. É só olharmos para a hipocrisia e a deturpação que grassam entre políticos, em que há tantos detractores a puxar a brasa à sua sardinha…
Entretanto, voltemos ao Vírus Malvado, que mata, destrói e altera a vida dos homens em todo o planeta Terra. A Doença traz outras doenças como a queda das economias e a catástrofe social que se avizinha. Por isso tem sido notícia o corredor aéreo que o Reino Unido poderia cortar para Portugal, para o Algarve mais propriamente. Os dois ou três milhões de turistas ingleses são muito necessários! E cortou-se a ligação, soube-se há dois dias. Como se falou de amizades entre os dois países, de acordos históricos, etc., seria uma questão de interesses e não de segurança contra o vírus… Havia já um sururu entre comentadores e algum público a propósito de a Grécia começar a considerar Portugal perigoso porque queria os turistas nas suas ilhas. Não passa do velho jogo do xadrez de interesses. Depois do Não, os canais de TV até gráficos apresentaram para conferir a situação do Reino Unido em relação a Portugal, Algarve, que mostravam como o número de infectados por cada cem mil habitantes assinalava uma diferença abissal a favor do Algarve. Todavia, toda a gente sabe isto, mas este assunto levou-me a recordar uma das minhas aprendizagens. Lembro- -me que a minha professora primária nos falava da grande amizade dos ingleses em relação a Portugal (transmitia o que vinha nos livros únicos de instrução) e na miúda que eu era despertou grande carinho e admiração pelos ingleses. Mais tarde, já no liceu, e na juventude da frequência universitária, com livros vários e professores vários, caiu- -me em cima a desilusão face aos ingleses. Aprendi como essa tal amizade era unicamente a seu favor, aprendi como tantas vezes nos prejudicaram através dos tais acordos históricos. Contudo, um conhecido comentador de Domingo, Marques Mendes, veio dizer que «os portugueses não têm de se queixar [ referia o não ao corredor aéreo], puseram-se a jeito». Fico a questionar a falta de raciocínio lógico e o descaramento de dizer que a má gestão, por parte do governo, da epidemia em Lisboa e Vale do Tejo levou a isso… Mas não falávamos da região algarvia?!
Termino com uma fase de Helen Keller: «Todo o mundo está cheio de sofrimento. Mas está também cheio de superação». É nisso que temos de acreditar.