Edição nº 1656 - 16 de setembro de 2020

José Dias Pires
EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA: NO CURRÍCULO ESCOLAR OU FORA DELE?

Parece-me absolutamente estéril e descabido esta tentativa de debate dos prós e contras (especialmente destes) da Educação para a Cidadania no currículo escolar. E mais inconcebível ainda a questão também suscitada com a chamada para a primeira linha da “objeção de consciência”.
Quem o faz ou é, quanto às questões educativas, absolutamente inculto e desinformado, ou parece esquecer, intencionalmente, que todo o processo de gestão curricular tanto nas áreas disciplinares como nas áreas não disciplinares (desde a aquisição da leitura e da escrita, ao domínio do cálculo, das ciências naturais e sociais, da cidadania, da educação moral e sexual e posteriormente em todas as etapas de aprofundamento que hão de decorrer até ao 12º ano) é a promoção da conjunção de aprendizagens e competências para o exercício consciente e competente da cidadania.
E a questão é simples: a participação ativa e o envolvimento na vida de uma dada comunidade, sustenta e contribui para a produção de conhecimento, para a responsabilização, a partilha de culturas e o desenvolvimento da identidade dos sujeitos.
O direito de participar, a partir da escola, na vida política, económica e social, não significa só por si que os indivíduos se impliquem no seu exercício efetivo, nem que estejam equipados para o fazer em situações de igualdade.
A cidadania ativa decorre do sentimento de pertença dos indivíduos e dos grupos à sociedade em que se inserem e, por isso, depende também da promoção de condições de inclusão e coesão social, bem como do desenvolvimento de atitudes e valores.
Quem melhor que a escola para o promover e sistematizar?
À medida que o exercício da cidadania se transforma num processo de inclusão social, as oportunidades de desenvolver e praticar a autonomia, a responsabilidade, a cooperação e a criatividade, contribuem para que em cada sujeito desponte um sentimento de mérito pessoal, no confronto e na tolerância face a ambiguidades e oposições por outros manifestadas.
A prática da cidadania alicerça-se num processo de reflexão crítica, não devendo ser automaticamente pré-estruturada através de uma listagem fixa de normas e valores.
Por isso o desafio que se coloca à Educação para a Cidadania, inserida no currículo escolar, consiste em determinar quais as necessidades dos indivíduos em termos da informação, dos saberes, das competências e capacidades de que se devem munir para se tornarem socialmente empenhados.
Na educação para a cidadania, o processo de aprendizagem é mais importante que o ensino transmissivo de conteúdos atomizados, porque a educação para a cidadania deve contribuir para o desenvolvimento da compreensão intercultural e de capacidades de tomada de decisão e resolução de problemas, as quais se desenvolvem sobretudo através da prática e da experiência.
Todo o processo de formação se relaciona com o processo de implicação pessoal na construção da cidadania. Este é um conceito de crescimento auto-controlado, cujo melhor local para acontecer é na escola, e no qual estão subadjacentes etapas e metas para superar os limites que, na construção da cidadania, cada etapa pressupõe:
- Duvidar das evidências e da certeza dos convencimentos, integrando, na interpretação dos fenómenos e das ideias apresentadas como certas e verdadeiras, uma atitude dialética sistemática.
Em suma: procurar construir cidadãos convictos em vez de personagens convencidas.
- Desconstruir os aspetos exageradamente apresentados como relevantes da consciência coletiva, procurando detetar incoerências e contradições que reduzam, no exagero do nós, a potencialidade da implicação do eu.
- Interrogar-se sobre as tensões inter-relacionais de gerações, culturas, interesses e perspetivas, procurando compreender e promover espaços de afeto no fascínio de viver com o outro ou os outros, procurando generalizar o viver com todos os outros, para conseguir, como disse Simone de Beauvoir - “ cativando-nos dois a dois, cativaremos a humanidade”.
- Assumir o saber-ser, o saber-estar e o saber-tornar-se, como um compromisso responsável de universalidade que é o afirmar da individualidade (o ser-se um) no coletivo (sendo todos).
É urgente passar às nossas crinaças e aos nossos jovens a noção de que cidadão é aquele que consegue ser produtivo e se fortalece, gradativamente, à medida que conquista a sua independência económica e espiritual, tendo perfeita consciência do seu espaço no mundo atual, adotando com convicção, princípios éticos, além dos legais, para alcançar o equilíbrio, a harmonia e o prazer da vida em grupo.
O processo de globalização nem sempre tem impulsionado a escola em direção à procura de melhores alternativas na articulação dos sistemas de ensino, cabendo aos educadores, a tarefa de desenvolver o potencial criativo dos educandos, estimulando-os a pensar, imaginar, inovar e, sobretudo, a gostar de aprender, para que desenvolvam autonomia e independência, características essenciais para a orientação de toda a sua vida.
Educar para a cidadania é o mesmo que apontar possibilidades, mostrar caminhos, revelar esperanças sem definir limites à liberdade de procurar os saberes: O saber fazer (se competente), o saber ser (ser consciente), o saber estar (ser participativo) e, principalmente, o saber tornar-se em agente transformador e de mudança (ser autónomo e exercer a cidadania).
O conceito de autonomia está fortemente ligado à atividade de cooperação.
Vivemos um momento de procura dos valores e da qualidade no processo ensino-aprendizagem, muitas vezes não alcançado devido a diversos fatores, tais como: recursos financeiros escassos, falta de recursos humanos qualificados, recursos materiais inadequados e insuficientes, contextos sócio-económicos diferenciados e, principalmente, inexistência de culturas de escola.
Todos ouvimos frequentemente falar da falta de civismo das novas gerações. Estas afirmações são sustentadas por argumentos que procuram descobrir na escola, que, dizem, não educar para a cidadania, a razão de todos os males. Mas será que é de facto assim?
- A quem assacar a falta de educação comunitária em áreas como o urbanismo, a cultura, o ambiente e a inclusão social e cultural?
- Quem assume que não fez tudo para evitar o descalabro do associativismo e das áreas de intervenção que o deveriam acompanhar, como a educação para a cooperação, a interação e a organização e gestão de projetos associativos?
- Quem tem possibilitado, pela facilitação de autorizações sem critério, a proliferação de ofertas distrativas redutoras de valores e cujos interesses são exclusivamente economicitas?
De facto o que à escola, por vezes, tem faltado é a capacidade e a possibilidade de promover ou aproveitar as pontes entre a escola e a comunidade e a comunidade e a escola.
Mas como este é um percurso com dois sentidos, torna-se indispensável dividir as responsabilidades e procurar motivações e meios onde encontrar os projetos para o exercício inclusivo da cidadania.
Não obstante as dificuldades que todos sentimos, felizmente ainda há hoje algo a que se pode chamar civismo, mas o conteúdo da noção evoluiu sem tomar ainda uma forma precisa. Os valores e as conceções dos jovens de hoje são, com efeito, partilhados entre uma herança cultural em parte contestada e novas exigências. Assim sendo que forma pode tomar a Educação para a Cidadania, no seu enquadramento de formação cívica?
Os jovens são certamente sensíveis à solidariedade, mas cada vez mais apenas à do pequeno grupo. A ideia de que o bom funcionamento da sociedade depende da disciplina de cada um, que todos são responsáveis pelos equipamentos coletivos, enfim que o dinheiro do Estado só pode ser o dos contribuintes, não os toca. Alem disso, não distinguem um comportamento individual duma relação com a sociedade global. Ajudar um cego a atravessar a rua é para eles um ato de civismo, mas é indiferente não votar.
Infelizmente temos observado alguma rutura entre a escola e a vida. Assim como o jovem trabalhador recusa um certo tipo de condições de trabalho e os objetivos da empresa, muitos adolescentes recusam os valores tradicionais da sociedade industrial: a produtividade, a utilidade. Aspiram a outra coisa, vivem segundo outras normas, porque o mais importante para eles são as relações interpessoais. Ora estas relações devia, já já não ser compatíveis com a competição feroz da sociedade liberal, capitalista.
A escola, mesmo que não absolutamente próxima das realidades, parece-lhes representar uma preparação indispensável para um futuro profissional que será amanha a vida deles.
Ora a antecipação do futuro é um dos fatores mais eficazes de integração social e, ela própria, componente essencial do civismo. Uma sociedade que oferece aos seus jovens perspetivas de desemprego, em vez de possibilidades de desabrochar, suscita forçosamente a contestação. A desvalorização dos diplomas é, pois, sob este ponto de vista, inquietante. Por isso algumas das grandes questões que hoje se nos colocam são:
- Como levar uma geração que privilegia as relações interpessoais a compreender que estas devem tornar a dar sentido e vida aos princípios, em vez de os combater ou de os desprezar?
- Como levar os jovens a passar da solidariedade do pequeno grupo a uma verdadeira responsabilidade social?.
Uma Educação para a Cidadania moralizante desagrada tanto aos professores como aos alunos, mas estes são acessíveis aos exemplos concretos que ilustram os princípios e por isso a reflexão sobre a atualidade torna-se indispensável neste domínio.
Mas se a curiosidade dos alunos pela atualidade merece ser tomada em consideração, a sua ignorância em matéria institucional torna necessário imaginar meios atraentes para os interessar.
A formação cívica, como lugar privilegiado de descoberta e de debates, poderia assim tornar-se no local onde se conciliam, pelo esforço de todos, valores demasiadas vezes considerados opostos: o amor pela ordem democrática e pela tradição, mas também a aprendizagem da cogestão e da cooperação, a procura da inovação, o sentido dos outros e das relações interpessoais e o respeito dos grandes princípios, o gosto pelo trabalho bem feito e o encanto dos tempos livres com sentido.
Os problemas levantados pela Educação para a Cidadnia são conhecidos. As orientações dadas concordam na maior parte das vezes com as conclusões a que todos os dias vamos chegando, mas uma grave lacuna priva de eficácia todas estas analises e diretivas: os objetivos são apresentados aos professores, mas não lhes são dados os meios de os atingir.
É, seguramente, mais importante formar cidadãos do que selecionar, pela matemática, futuros trabalhadores em função de um imprevisível mercado de emprego.
Milhares de jovens passam milhares de horas na escola e as respostas relativas ao seu pouco interesse pelo que fazem são desoladoras.
Estou convicto de que agora é o tempo para que na escola se aprenda, se viva e se imagine, o que deveria ser e poderia ser graças ao esforço de todos, a educação, o ensino, a participação individual e coletiva, os direitos e os deveres que, consubstanciados no exercício consciente e crítico da cidadania conjugam em toda a dimensão a qualidade de vida.

16/09/2020
 

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