Guilherme D'Oliveira Martins
SOBRE AS HUMANIDADES…
“Colheita de Inverno” de Vítor Aguiar e Silva (Almedina, 2020) reúne Ensaios de Teoria e Crítica Literárias da maior importância, não só pela diversidade de temas, mas também pela grande qualidade dos textos, pela sentido pedagógico e pela importância científica.
Quando recebi este apetecível volume de ensaios, disse ao autor que se tratava de uma verdadeira colheita de Primavera, pela diversidade de temas, fecundidade do respetivo tratamento e pistas tão estimulantes apresentadas. É evidente que a melhor garantia estava no autor, e em tudo quanto nos tem dado, mas é sempre bom podemos verificar como as literaturas da língua portuguesa oferecem extraordinários elementos para conhecermos o melhor que a cultura nos reserva. Sente-se a “humanitas” dos clássicos na presença dessas referências perenes. No livro, encontramos três suculentas partes – Ensaios de Teoria Literária, Ensaios Camonianos e Ensaios sobre Literatura Portuguesa. Em regra, quando temos em mãos uma reunião de textos de proveniência vária podemos temer que reencontremos o que já conhecemos e que reafirma mais do que renova. Não é isso que ocorre com Vítor Aguiar e Silva e em particular com esta obra – e o conjunto permite um saudável efeito de novidade, e devo dizer que neste caso, estamos perante um livro fundamental para quem queira compreender a atualidade e a força da língua portuguesa, na sua diversidade e no seu potencial criativa e artístico. Afinal, reunidos os textos de diversas proveniências, a sua complementaridade fá-los ganhar uma vida que permite olhar sob uma luz resplandecente a vitalidade da criação cultural. Voltando a jogar com estações do ano, leia-se e releia-se “Primavera e Inverno da Filologia Românica”. Aí se explica como se chegou à má imagem da filologia, confundida com saber de antiquários e de eruditos fora do mundo, com reservas contaminadas ideologicamente. Vão longe a ideia de “scienza nuova” de Giambattista Vico a partir das criações humanas, linguagem, poesia, mito, até à religião e ao direito, e a clarificação de Carolina Michaëlis de Vasconcelos sobre a filologia da palavra, da língua e da literatura. Houve um longo caminho, mas a hermenêutica dos textos precisa dos fundamentos filológicos. Daí o autor falar da necessidade de uma filologia pós-imperial, capaz de entender os efeitos do seu banimento, devendo articular-se com a linguística, a hermenêutica, a teoria da literatura e literatura comparada…
Afinal, temos sempre de entender o que permanece e o que muda – e a realidade histórica depende sempre do entendimento das duas perspetivas. Lembramo-nos da querela dos Antigos e dos Modernos, e o autor recorda-nos a metáfora usada por Jonathan Swift, ele mesmo defensor ativo dos Antigos. Abelhas e aranhas confrontam-se na “Batalha dos Livros” (1704), as abelhas representam o labor interminável dos poetas enquanto as aranhas, reclusas de si mesmas, não têm memória e constroem a sua astuciosa e letal teia. Estaria em causa o perigo da amnésia total da tradição, na arte como na ciência, que nos condenaria ao silêncio. No entanto, a rutura com a tradição e a absoluta originalidade das Vanguardas são mitos desmentidos pela própria dinâmica da literatura, que levou Fernando Pessoa a escrever que em qualquer poema deverá haver “qualquer coisa por onde se nota que existiu Homero”. Culturalmente, jamais existirá originalidade pura. Pelo que a fábula das abelhas e das aranhas é uma simplificação sem correspondência com a realidade humana… Mas a verdade é que “a metáfora não pode deixar de ser lida e interpretada como metáfora, ao passo que a alegoria pode ser lida não alegoricamente”. E ao longo dos diferentes ensaios, vamos encontrando a preocupação de entender, como afirmou Octavio Paz, que “o mundo começa por ser um conjunto de palavras. Mais exatamente: o mundo é um mundo de nomes. Se nos tiram os nomes, retira-nos o nosso mundo”. Mas o mundo em que se move Fernando Pessoa é irremediavelmente “sem centro e sem horizonte, com múltiplas verdades, com deuses diversos e contraditórios, desesperadamente vazio”.
Contudo, Aguiar e Silva lembra em Romarigães, com Aquilino, a terra fecundada pelas chuvas e pelo sol, por entre a alegria dos trabalhadores minhotos. E Ruy Belo invoca o requiem por Portugal, que depois de Camões se tornou um tema recorrente - “as lágrimas da elegia orvalham piedosa e melancolicamente essa interrogação, mesmo quando a utopia e o messianismo parecem incendiá-la”. David Mourão-Ferreira faz da crítica literária “um exercício de amor e um espaço de dialógica compreensão e admiração que nunca as diferenças ideológico-políticas vieram a turvar ou perturbar”. Manuel Alegre é lembrado na expressão reflexiva e meditativa. Albano Martins, Francisco d’Eulália, António José Saraiva ou Vasco Graça Moura ajudam-nos no caminho da compreensão das culturas da língua portuguesa, como marcas de emancipação e de vitalidade. Na busca de um cânone literário para a língua portuguesa, podemos encontrar a génese do termo “clássico”, como relacionado com as classes das escolas, passando a designar o autor lido e estudado nas classes das instituições de ensino, por ser excelente e modelar. E o cânone ganha o significado característico que David Ruhnken atribuiu à palavra, universalizando-a, como conjunto de textos ou de escritores selecionados pela sua qualidade e prestígio duradouro e exemplaridade linguística e literária. E, em falando de cultura, a tradição é um património com continuidades e descontinuidades, que vai sendo confirmado, alterado, redescoberto e reinventado: “cada presente histórico reconstrói um passado literário que justifica e legitima este presente”. Daí que “não se deva impor uma norma exclusiva e excludente” – o cânon literário terá “como destinatários ideais os alunos do ensino secundário”, devendo “ser elaborado por uma instituição como o Instituto Internacional de Língua Portuguesa, a partir de proposta de entidades nacionais escolhidas para o efeito pelo Ministério da Educação de cada país da CPLP e será plasmado em antologias, contendo adequada informação linguística, histórico-literária e comparatista, que concedam representação maioritária aos autores do país a que especificamente se destinem como livro escolar e que deem representação equitativa aos autores dos outros países”. Na cronologia das literaturas africanas pós-coloniais deverá considerar-se os séculos XX e XXI, sem esquecer os autores portugueses e brasileiros do século XIX que foram, e são mestres da língua, como Eça de Queiroz e Machado de Assis, além de Camões e Vieira, a quem o idioma comum deve tanto da constituição e irradiação do seu património. Longe de paternalismos ou preconceitos, importa lembrar Celso Cunha, que fala de uma “unidade superior da língua portuguesa”, dentro da sua diversidade que nos cabe preservar…