Edição nº 1661 - 21 de outubro de 2020

Lopes Marcelo
VIVER COM MENOS

No actual contexto de pandemia, a incerteza perante o futuro implica insegurança não só a nível individual e familiar mas, sobretudo, no devir colectivo. Há quem anseie voltar à dita normalidade anterior ao surto epidémico. Há quem acredite que tal é possível e há quem se interrogue e entenda que a anterior normalidade em termos de hábitos de vida, organização social e económica era pouco saudável e nada sustentável, já que continha muitas contradições, agredia o ambiente, gerava rupturas e acumulava desigualdades e injustiças gritantes.
De facto, um dos eixos que tem marcado a evolução da nossa sociedade, dita de progresso económico é a ânsia de consumo, tanto mais consumo maior índice de civilização. Contudo, será mesmo assim? Não poderá uma reflexão séria demonstrar que é possível viver bem com menos bens. Sim, viver com menos coisas e bens materiais já que na verdade a vida depende de poucas coisas essenciais. Vejamos alguns exemplos.
Em termos de classe média, vive-se com acesso generalizado ao consumo, rodeados de aparelhos/escravos tecnológicos, designadamente dentro de nossas casas. Tantos aparelhos eléctricos: frigorífico; fogão; micro-ondas; torradeira; máquinas de lavar e de secar a roupa, a loiça; trituradora; máquina de café; arca-frigorífica; esquentador; secador do cabelo; televisor; aparelhagem de som; rádio; computador; aquecedores/aparelhos de ar condicionado; ventoinhas; telefones…. Será que são todos indispensáveis? Exigem menos trabalho, podendo libertar o tempo das pessoas para viverem melhor. Mas será que vivem com mais tempo para elas próprias e para as outras pessoas? Ou, continuam a consumir, a consumirem-se afadigadas na pressa do dia-a-dia. Tínhamos as casas recheadas mas passávamos pouco tempo em casa, na ânsia de ter mais, de consumir mais.
“Quem casa quer casa”, diz o povo e é verdade. Contudo, os casais, mesmo com um pequeno período de namoro, têm logo como grande preocupação e prioridade mobilar de forma completa a casa com todos os pormenores e os designados aparelhos/escravos tecnológicos. Casa posta e, concretizada a união/casamento, tantas vezes pouco tempo desfrutam da casa, pois se separam. Entenderam-se na azáfama consumista de montar casa, do evento social do casamento e lua-de-mel mas, quando sós, dão-se conta que não investiram neles próprios, no seu conhecimento, respeito e estima recíprocos. Em vez de investirem, de construírem o seu Projecto de vida comum, de olharem na mesma direcção, uniu-os a aparente festa do ter já hoje e não amanhã. Vai-se esboroando a capacidade em adiar as recompensas materiais. Valorizam-se pouco as realizações e as recompensas emocionais, a aprendizagem, o progresso enquanto pessoas progressivamente mais enraizadas, mais conscientes e responsáveis.
Tanto consumo e ânsia de ter, de possuir já, não liberta tempo nem maior disponibilidade para o diálogo e consideração pelas pessoas, quer nas famílias, quer nos locais de trabalho. Não é o que se passa em relação aos mais velhos? Nas famílias não há tempo, nem condições psicológicas para dialogar, aturar, cuidar de quem mais precisa. Os Lares estão cheios, tanto assim é que surgem e se mantêm os ditos “lares ilegais” embora do conhecimento e cumplicidade das autoridades, pois há clientes para todos. Tantos deles pouco mais são do que armazéns de pessoas idosas e com doenças, em que o apoio é basicamente técnico mais ou menos especializado, quase sempre frio e pouco humanizado.
Será que a paragem forçada imposta pela pandemia vai proporcionar uma reflexão séria e profunda, quer a nível individual, quer colectivo, sobre a matriz dos valores e condições essenciais à vida em sociedade, propiciando alterações de perspectiva, de prioridades e de estratégias ou, quando passar a perturbação deste arrefecimento, voltará a febre consumista do modelo económico e social condicionador, competitivo e autoritário?

21/10/2020
 

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