Edição nº 1662 - 28 de outubro de 2020

Elsa Ligeiro
UMA HORA NO INFERNO

Começam a chegar perto das sete da manhã em potentes jipes, e todos, sem exceção, com um atrelado onde ladram perdigueiros.
A monte, em gaiolas onde se vê que não cabe uma agulha para além dos fiéis amigos de caça. Uns em cima dos outros, num incómodo canino.
Enquanto os donos se alimentam na Pastelaria em frente, e porque as gaiolas se amontoam à porta para o repasto na quase madrugada, ladram uns aos outros; e o ganir agudo fura os tímpanos ao mais paciente dos vizinhos.
Uma hora, não mais, o Inferno é em Alcains, na artéria principal de entrada na Vila. Só pressentido pelos vizinhos da Avenida 12 de novembro.
Enquanto os donos se banqueteiam na Pastelaria, numa gula de torradas e bolos; os perdigueiros iniciam a sua função ritual, mostrando o seu nervoso; ladrando aos seus pares que em gaiolas-atrelado são invasores do seu território, rivais na sua utilidade, mesmo ainda no estacionamento.
Há um conto de Miguel Torga: Nero, no livro Bichos, que fala da vida de um perdigueiro, espécie domesticada com um único fim: ajudar na caça.
Nos comentários ao conto, nas muitas das comunidades de leitores a que pertenço; lá chegam os elogios à fidelidade do cão. O percurso profundamente humano dos que trabalham e são substituídos por outros mais jovens no lugar que antes foi só seu. Uma metáfora do que nos acontece a todos, os humanos, afirmam.
Poucos veem a caça como tema nuclear do conto.
O animal alimentado para servir o dono que vive na cidade e que vem caçar à província numa manifestação de poder com arma na mão.
Que traz amigos para o almoço ou para o jantar. Que mostra propriedades herdadas ou compradas com o dinheiro ganho na Bolsa e em negócios em que é só necessário “pô-lo a render”. Nenhum valor é mais seguro que o ouro e o dinheiro que se tem para a multiplicação da riqueza, todos o sabemos. O inferno é para quem o não tem para investir nesse cume da sabedoria que é a alta finança.
No conto de Torga, Nero é um belo exemplar de perdigueiro, enquanto jovem ninguém o vence. Ninguém vence a sua velocidade e o modo como transporta a presa ensanguentada e a entrega ao verdadeiro dono.
É um ritual histórico e bem preciso para explicar o poder. Um resquício ancestral de como ele se exerce e com que meios.
São sete hora da manhã, e o inferno continua, em frente. Domingo, é, para mim, um dia especial de trabalho; uma manhã livre, que começa invariavelmente todos os dias às seis; de Leituras de originais que vão chegando durante a semana; e que ao domingo tento dar uma resposta.
Mas domingo é também, agora, neste outono de que gosto tanto; uma hora no inferno; com perdigueiros a clamar por liberdade, ou ação (que sei eu de caça?) que justifique a sua vida bem alimentada, diariamente, para o serviço dominical de ajudante na caça.
Não há nesta crónica de denúncia do inferno (uma hora, pelo menos) em Alcains, qualquer juízo moral (há, quanto muito, uma irritação matutina da ocupação do espaço público – a rua).
Estes caçadores são para mim homens sem nome nem rosto, donos de perdigueiros com identificação apenas familiar e de posse. Nada me move contra uns ou outros; e contra todos os que os substituirão no ritual.
Apenas afirmo que constroem na minha consciência (sem o saber), durante uma hora, a visão do inferno.

28/10/2020
 

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