Valter lemos
PORTAGENS!
As SCUT foram criadas como instrumento promotor do crescimento económico. O seu racional assenta no pressuposto de que a mobilidade é uma condição-chave na economia moderna, a qual, no caso português, é especialmente relevante na vertente rodoviária dada a situação obsoleta a que havia chegado a ferrovia, depois de dezenas de anos de abandono. A questão é manifestamente prioritária nas regiões periféricas do país, onde a distância para os grandes centros de consumo se transforma num custo de contexto muito significativo, penalizando gravemente a competitividade das empresas aí situadas e constituindo assim um pesado entrave ao investimento em tais regiões.
O não pagamento de portagens nestas vias constituía assim uma forma de discriminação positiva das regiões economicamente mais débeis, ou seja, essencialmente o interior do país, numa perspetiva de criação de condições à aproximação destas à média nacional.
Tendo sido as SCUT lançadas por um governo do PS, diversos outros partidos políticos desenvolveram oposição às mesmas, uns por defenderem o princípio do utilizador-pagador e assim discordarem do não pagamento de portagens, outros porque as mesmas constituíam parcerias público-privadas (forma que havia sido utilizada para construir mais rapidamente as citadas estradas, dado que não haveria capacidade financeira e operacional do Estado para o fazer nos mesmos prazos).
O primeiro erro político neste processo foi a construção de autoestradas SCUT, em regiões onde não fazia sentido por não terem os indicadores económicos que o justificassem, como os arredores do Porto, aumentando assim os custos a suportar pelo Estado. As únicas SCUT deveriam ser a A23, A24 e A25 (e mesmo esta somente de Vilar Formoso a Viseu). A A22 poderia justificar-se por razões um pouco diferentes, designadamente pelo facto de ser verdadeiramente a única via transversal no Algarve, visto que considerar como tal a N125 é uma falácia, dada a quase completa integração urbana da mesma.
Com a crise financeira de 2009 e a posterior chegada da troika, uma das condições do memorando era o fim das SCUT, passando a ser cobradas portagens aos utilizadores. Mesmo que aceitemos a inevitabilidade dessa medida, a mesma foi sempre anunciada como parcial e transitória e assim decidida pelo governo PS de então. Com o governo PSD/CDS seguinte perdeu-se desde logo o caráter parcial. As portagens passaram a ser pagas integralmente pelos utilizadores, transformando as SCUT em autoestradas idênticas às outras e acabando com o princípio da discriminação positiva. Este foi o segundo erro político, porque transformou uma decisão parcial e transitória numa decisão geral e definitiva sem uma justificação de princípio.
Com o governo PS apoiado pela “geringonça”, esperava-se uma reversão da situação, dado que o PS e os partidos de apoio ao governo sempre haviam contestado a posição do governo PSD/CDS, tanto mais que a justificação da “troika” e da crise já não faziam sentido. Foi até criada uma secretaria de Estado da valorização do interior, sediada em Castelo Branco, da qual se esperava intervenção na questão. Mas, afinal durante um mandato completo o governo da “geringonça” esteve longe de reverter a situação, introduzindo somente um pequeno desconto, cuja racionalidade nunca chegou sequer a ser aceitavelmente explicada.
Com o novo governo PS saído das eleições de 2019 foi criado um ministério da coesão territorial que englobou a anterior secretaria de estado cuja sede passou de Castelo Branco para Bragança. A nova ministra, Ana Abrunhosa, com fortes ligações ao interior do país, anunciou a vontade de alterar a situação do pagamento de portagens nas antigas SCUT, mas, verdade seja dita, um ano depois tudo o que o governo apresentou foi um confuso e débil esquema de descontos baseado na frequência de utilização, que pouco mudava a situação existente.
Chegado ao primeiro orçamento de estado do novo governo do PS, este não apresentou uma proposta que mostrasse que pretendia reverter a curto ou médio prazo a situação das portagens nas SCUT. Este foi o terceiro e mais recente erro político. O PS criador das SCUT, depois de superada a crise financeira, de acordo com a sua própria narrativa política, mostra ter aceitado o princípio e a argumentação do governo PSD/CDS para manter as portagens.
E é então que aparece a proposta do PSD para baixar as mesmas em 50%, o que colhe o apoio do CDS, PCP e BE.
O Governo PS é, assim, apanhado com as calças na mão! E deixa completamente pendurados os seus deputados dos distritos do interior que se veem repentinamente ultrapassados pela direita, depois de andarem anos a perorar sobre a abolição ou diminuição das portagens!
Em verdade não pode dizer-se que o Governo PS não mereceria isto. Afinal a retórica sobre a superação da crise serviu para repor tudo, menos a abolição das portagens no interior e a reposição das SCUT cuja conceção e implementação havia sido realizada pelos governos anteriores do mesmo PS. Não sei se os deputados mereciam ou não, porque não tenho meios de avaliar a sinceridade das suas intervenções ao longo destes anos, mas sei que, pelo menos, talvez pudessem não ter votado contra a proposta e manter alguma coerência sobre o que andaram a dizer.
E, já agora, a senhora ministra da coesão territorial ainda existe?