Antonieta Garcia
O PORÉM DO JOÃO…
Mal o solzinho aquecia um bocadinho, o passeio até à Santa Luzia era imprescindível. Esperava-nos um largo enorme, para conversar, piquenicar, correr, passear com os garotos…
Começava-se com um momento de iniciação: no centro, havia/há um coreto… Subiam-se as escadas e, ali, nasciam “maestros” que regiam com mãos que voavam e desciam, comandadas por uma batuta ad hoc, cabelos e cabeças a desgrenharem-se para a afinação e a emoção real da melodia… A música vinha de melros-pretos, pintassilgos, cotovias, pardais… Louvavam-se e chamavam-se em vocalizações de alegria, de furor, de alarme ou de amor. Estas e outras aves andam aninhadas, há séculos, em narrativas velhinhas que sempre se ouvem em terreno sagrado. Mochos, corvos, cucos, pegas, galos, rolas, pombas... ali, enchem arcas de Noé inteirinhas. São diferentes as vozes! A rola canta e parece um gemido! Depois, são os trinados dos canários, o grasnar dos corvos, o chilreio do pardal… E cada um dos “maestros” atendia à ave preferida para reger com saber e alma as suas sinfonias. Por ali, o voo e o canto nunca faltam. Cativam:
- Ouviste? É uma rola! Olha: o melro assobiou, respondeu-lhe! Onde andam as carriças pequeninas, e aventureiras?
Ganapos traquinas, deliciam-se no espaço verde, não param, mexem, mexem, mexem…. A relva, as capelas com as santinhas que se espreitam pela janela, curam doenças e distribuem milagres, oferecem-se como cenário de mistérios e relatos falados por estranhos sons. O arvoredo ajuda à festa e sopra, assobia, sussurra, despenteia-se, baila.
A visita a este Largo da Santa Luzia, a Santa que dá luz aos olhos, encantava-se com o ensaio das sonatas, pastorais, serenatas das aves, do vento… Ouviam-se, às vezes, orações que as Senhoras atendiam aos pedidos, descontavam as promessas, acalmavam fragilidades íntimas… Tecedeiras de destinos e de sonhos rezavam o terço, pelas contas, completavam novenas… Depois, soltavam-se e cantavam o amor, as fragilidades íntimas:
Senhora Santa Luzia / Vizinha do Castelejo / Dai-me vista aos meus olhos / Sou ceguinha não vos vejo. // Senhora Santa Luzia / Vinde abaixo dai-me a mão / A ladeira é comprida / Não me ajuda o coração. //
Lembram também saudades tantas que interpelam: Para que quero eu olhos/ Senhora Santa Luzia /Se eu não vejo o meu amor/ Nem de noite nem de dia?
Afinal, os olhos, janelas da alma, prestam para falar o amor e o ciúme dos dois: Os olhos do meu amor / Santa Luzia guardai-lhos / Se eles para mim não forem / Santa Luzia, chincai-lhos. //
As Senhoras tudo percebiam, ouviam e atuavam. No mesmo Santuário, está Santa Eufémia (Eu-Fêmea?), advogada das doenças femininas e da pele. Os registos em cera que se encontram nas capelinhas apregoam agradecimentos dos fiéis pelos muitos milagres das Senhoras. Serenas e contemplativas, rebeldes a qualquer exatidão matemática, conquistam crentes com milagres de menor ou maior monta…
Com os gaiatos, interessante era a hora em que surgiam perguntas:
- Mas, porque é que só se curam alguns? (…) Mas há muitas pessoas cegas…
Mas quem é que é escolhido?
Respostas frouxas, para gente abaixo dos 14 anos, os “mas” não acabavam… Dei a volta ao texto, fugi: E se em vez de tantos “mas”, usasses um “porém”…
Comenta o João: Essa palavra não existe! Nunca ouvi ninguém dizer: porém…!
Opôs o dedo polegar ao indicador, juntou-os até desenhar o zero, e repetiu com voz afetada, sublinhando prolongadamente, cada uma das sílabas: Poooo-rém… Isso só nos livros. Ninguém fala assim. E repetia, ironizando: Poooorém…
Realmente! Por onde anda o porém? E o todavia? Que fizeram do contudo…? O não obstante exilou-se???
O segredo do serviço que prestam algumas palavras deitava a cabeça de fora. Zangou-se.
Pragmático o João insistia:
- Para que é preciso o “porém”? Que mal tem o “mas”? Não chega? Toda a gente conhece…
- O “mas” fica repetitivo, insuportável, pobrezinho, maldisposto… Numa composição sempre podes escolher outras palavras… E o “porém” não faz mal a ninguém…
Concordou com restrições: Na escrita, sim! Percebo. Mas se eu falar “pooorém”, os meus amigos fartam-se de rir…
Acredito?