José Dias Pires
A CONSTITUIÇÃO DA NOVA ORDEM FELINA - CAPÍTULO 1
Mudei-me para gato. Sei que nesta incorporação conseguirei ser verdadeiramente independente, apesar das naturais dependências que me imporá a crueldade da vida e quem eu escolher para meu humano de companhia.
Assumo, sem pejo, que continuarei a ser republicano e laico (dado que os gatos não têm, que se saiba, vocação para o sacerdócio).
E porquê gato? Perguntarão. Em primeiro lugar, porque estou a começar a ficar farto dos humanos “chicos espertos” que por aí pululam (e agora ainda mais com a campanha eleitoral para a “deslumbrância” personalizada dos que desejam presidir a esta República do Cansaço).
Em segundo lugar, porque estou farto de os ver evocar o texto constitucional que, pelo que ouço e vejo, creio que a maioria não leu até ao fim.
Ora na República da Nova Ordem Felina, para a qual me mudo, até a constituição é um deslumbramento.
Passo a explicar porque me deslumbrei com ela (a Constituição da Nova Ordem Felina).
Aliás, comecei por me responder algumas perguntas fundamentais:
Pergunta Um — O que é uma Constituição?
Diz-nos a História que tal demanda (encontrar-lhe resposta) ainda ninguém a realizou na plenitude, embora tal jornada se tenha iniciado no século XVIII.
Acomodo-me, inconformado, com a que, para mim, é a melhor aproximação a uma resposta que não se limita a querer ser conveniente:
Uma Constituição é o mais incompleto dos textos completos onde se preveem, regulam e projetam direitos, deveres, proveitos e afazeres dos seus constituídos, suficientemente complicado nas palavras para parecer perfeita e completa; e habilidosamente dotada de algumas frestas (palavras que podem significar mais do que uma coisa) que permitam, se necessário, algumas habilidades felinas que possam ajudar a escapar sem uma gota de água no pelo, entre os pingos da chuva, isto é a cumprir (mas sem exagerar) as obrigações republicanas.
Pergunta dois — A quem serve uma Constituição?
Ensina-nos a prática republicana que uma Constituição não pode servir a dois amos, como acontece nas Monarquias Felizes, mas deve servir a muitos amantes.
Sendo, neste particular, felinos os seus amantes, a Constituição da Nova Ordem Felina deve obrigar-se a servir:
1º — Quem é independente, autónomo e senhor de um certo orgulho felino refletido no olhar e acentuado na postura (aqui refiro-me à forma de estar e não à capacidade de pôr ovos);
2º — Quem, não perdendo o seu republicanismo, também tem (mas não a deve usar), de acordo com todas as imponderáveis ponderações (pensar bem pensadinho), a capacidade de ser traiçoeiro, fingidor, cruel e pérfido;
3º — Quem, não sendo felino, se aproxima na morfologia e na motricidade a insetos voadores, como o pensamento ou rastejantes, como a estupidez (é compreensível que a Constituição da Nova Ordem Felina sirva estes não felinos, para que os Felinos Felinos não se esqueçam que também são caçadores).
Pergunta três — Como pode uma Constituição servir sem que dela se sirvam os seus constituintes para qualquer tipo de proveito dos seus constituídos?
Usando a mesma estratégia que nas perguntas anteriores, encontra-se a mais fácil e mais simples de todas as respostas: não pode, porque ela mesma se reconhece suficientemente fechada para parecer perfeita e completa; e habilidosamente dotada de algumas frestas para o que já referimos, e em três palavras se resume: chegar aos proveitos.
O Proveito será, pois, a minha imediata preocupação.
Proveito e tirar proveito: diria qualquer árabe que tirar proveito (de uma refeição) é honrar, agradecer, homenagear o anfitrião, arrotando.
E quanto maior e tonitruante for o arroto, maior o proveito e a homenagem (e os felinos arrotam).
Pergunta quatro — Será assim com as Constituições e os felinos?
É. Quem come e bebe à sombra das leis, quase sempre se empanturra, podendo, sem favor, homenagear a anfitriã Constituição de forma toeira (arrotar alto e bom som), se nela, dela ou com ela soube tirar proveito.
Pergunta cinco — O que é ter bom ou mau proveito (o mesmo é dizer, digerir bem ou mal o que se aproveita).
Sei, desde pequeno, que é no aproveitar que está o ganho. E isso coloca-me perante um novo conceito que não esperava ter de aprofundar: Ganho.
Contudo, todo o trabalho até agora desenvolvido me encaminha para uma inesperada e fácil conclusão: Ganho é o que resulta de quem tira bom proveito do que a Constituição, pela qual se regula, lhe permite conseguir ao separar a gordura do fiambre; os animigos dos inimigos; a casca do miolo do pão; a chicha das espinhas do peixe e por aí a fora.
E, sendo assim, ter mau proveito é o que resulta dos que, por má fé ou incompetência, nada conseguem ganhar do que a Constituição ou a Ordem lhe proporcionaram.
Bem feito!
Enfim, escrito tudo o que avisar urgia e esclarecer se tornava indispensável, passarei em breve, de forma dedicada e modo exclusivo, ao texto constitucional.
Até lá, deixem-se de aturar a campanha eleitoral para a “deslumbrância” personalizada dos que desejam presidir à República do Cansaço.