José Dias Pires
OS TRÊS RELÓGIOS DE OUTRAS PANDEMIAS
Se os nossos avós fossem vivos poderiam contar-nos melhor como foi sobreviver a outras pandemias que a pandemia atual ajuda a diluir no tempo: a guerra, a fome e a falta de liberdade.
Hoje somos nós os avós. Andamos à procura de não deixar morrer as nossas lembranças que moraram no Bairro das Memórias, o bairro dos nossos avós. Nesse bairro, todas as ruas eram cinzentas como os seus cabelos. As casas, brancas e limpas como as suas recordações, tinham as portas pretas ou pardas como os seus sonhos. Mas as suas histórias eram coloridas, sonoras, aromáticas como as suas flores. Pecavam por escassas e eram únicas. Repetiam-se, invariavelmente, todos os dias. Nós, os seus netos, sabíamo-las de cor. Contudo, para uns e outros, eram sempre novas — tinham a novidade de cada um dos instantes na vida dos peixes. As palavras eram sempre as mesmas; as pausas repetiam-se iguais; as gradações aconteciam nos mesmos momentos e os espantos antecediam, sempre, um final em reticências à espera do nosso regresso depois de crescidos.
Dizem as minhas criativas memórias que aqueles tempos e espaços podiam ter sido assim:
O Bairro das Memórias ficava no extremo sul da cidade, virado ao sol para aquecer, nas casas muito brancas, os frios daqueles a quem o tempo e a vida arrefecia. Na entrada para o resto da malha urbana estava uma enorme torre de relógio, cilíndrica. Tinha uma cúpula piramidal com três mostradores circulares onde, segundo a segundo, rodava um único ponteiro entre as duas margens do zero, o único algarismo lá desenhado. Aquele relógio intrigava quem o olhava. Porquê um só ponteiro? Qual a razão de um só algarismo? Para quê contar apenas os segundos?
O meu avô tinha uma explicação. Dizia que era para garantir a Eternidade Infantil. Coisa estranha. Eternidade Infantil num bairro de velhos, num bairro de avós.
«Eternidade, avô? E isso não é muito tempo?» «Não.» «Não?» «Não, a eternidade não tem tempo.» Acreditei, era o meu avô que o dizia.
Os nossos pais moravam no Bairro do Trabalho, e nós com eles. O Bairro do Trabalho era conhecido pelo Formigueiro e ficava no extremo oposto ao bairro onde moravam os avós. Tal como as suas ruas, quase todas as suas casas eram estreitas, escuras. Pareciam a projeção urbanizada das nossas vidas. Viradas a norte, as habitações eram térreas e de tijoleira. Perfeitas para desempenhar o papel de refrigeradoras das emoções de fim de tarde, ou de fim de semana, quando os nossos pais regressavam depois de uma passagem, a fiado, nas tascas situadas estrategicamente no topo interior da Rua da Fábrica, a mais ampla do bairro e que desaguava na entrada do Bairro dos Doze onde, em sentinela, estava a imensa Torre do Relógio Vinte e Quatro.
Na verdade, a torre era uma grossa parede em cantaria que tinha na parte superior um largo mostrador circular onde estavam marcadas as vinte e quatro horas do dia. Também aqui havia apenas um ponteiro que saltava de hora em hora. Nunca lhe ouvi o sino, se é que o tinha, mas a sua sirene, que tocava estridente às oito e às dezoito horas, estava de tal forma enraizada nos nossos ouvidos que acabava por nos causar menos impressão que os gritos das nossas mães quando nos chamavam para as refeições.
Havia outro bairro — o Bairro dos Doze, ao qual alguns também chamavam de Bairro dos Apóstolos do Medo, e que os nossos avós designavam de Bairro das Miragens. Ficava no centro da cidade, numa pequena elevação sobranceira aos outros dois bairros. Aí viviam doze famílias.
A partir das suas casas ajardinadas, dominavam toda a cidade e defendiam um único e, aparentemente, invisível senhor: o poder. Por isso a segunda e a terceira designações. Também tinha uma torre de relógio. A maior de todas. No centro da enorme praça onde confluíam as suas amplas e luminosas ruas, o mas-todonte branco, paralelepipédico, tinha a encimá-lo um olho espantado, um mostrador de vidro fosco, sem ponteiros nem algarismos, apenas com uma enorme pinta preta no centro — O Olho do Tempo — que brilhava de dia e de noite iluminado por um intenso foco de luz projetada do interior.
Marcada pela dicotomia dos relógios das torres, a minha infância foi atabafada pelo permanente confronto entre os controladores, os pais e os filhos do Bairro dos Doze, e os controlados, os não felizes aos quais as famílias estavam proibidas de oferecer um relógio de pulso quando entrassem na escola.
Poucos foram os que se escaparam ao ramerrame repetitivo das suas vidas. Oriundos do bairro do meio, alguns eram os tasqueiros onde os operários afogavam as angústias e se afogavam em calotes semanais de vinhos e petiscos de palito. Originários do Formigueiro, outros eram oficiais de comércio, nome pomposo que os Apóstolos do Medo davam aos empregados encarregues das suas lojas. Alguns dos velhos, depois de reformados, encarregavam-se dos jardins no Bairro das Miragens. Era a forma hipócrita de os compensar, numa aparente liberdade, com uma consentida passagem pelas propriedades dos antigos patrões que deles se serviram num regime quase esclavagista.
Outros fugimos, quando pudemos, para longe. Estamos a voltar, aos poucos, depois de velhos. Importa que ainda tenhamos tempo para passar as memórias dos nossos avós aos nossos netos.