Antonieta Garcia
A PANDEMIA, UMA LADRA DE AFETOS
Junho entreabriu a porta e as festas populares pularam para a rua... E esta era uma narrativa que apetecia reescrever. Mas, de novo, a Pandemia, a maledicta, aferrolhou a alegria que nos preparávamos para receber de braços abertos. Ora abóbora! Há tanto tempo que não celebramos os nossos Santos Populares mais simpáticos, António, João e Pedro!
Dão-nos migalhas, quando a fome dura há mais de dois anos inteirinhos a que se somam não sei quantos dias sem fim.
Sua excelência, a Pandemia, alucinada, não recolhe aos seus aposentos, não encolhe de vez, antes alastra numa demanda atordoada de tragédias choradas em desvairadas línguas. Lastimava o avô:
- O meu neto nasceu agora! Coitadinho, nem avós tem!
E a lagrimita segurava-se, íntima de quem entende a dor de não poder dar colinho a um pequenino, mimá-lo, aconchegá-lo, para lhe explicar em abraço apertado aquilo que as palavras não sabem dizer.
A pandemia afasta as pessoas, isola-as, castiga-as, mata. É uma ladra de afetos! Uma ladra!
Os dias de junho eram para a infância de boa memória; quase a entrar nas férias grandes, saíamos para a rua a saltar fogueiras, a celebrar o caldo verde, a sardinha assada, a cantar e a bailar cantigas de bem querer.
Os dias mais longos, o sol lindo, lindo, lindo traziam a miudagem toda para rua... Até à noite, andarilhávamos tanto que ficávamos cansados. Era difícil, mas acontecia. Então, sentávamo-nos na soleira da porta, nas escadas exteriores da casa à espera da pergunta mais complexa do mundo:
- Agora vamos brincar a quê?
Não era fácil decidir. Cada uma apresentava o seu palpite. Raramente chegávamos a consenso. Disputas de lideranças, divisão de vitórias comandavam a argumentação. Com as participantes divididas como disputar um jogo a sério? Disputar um jogo com poucos intervenientes nem era vitória nem era nada!
Partíamos para a negociação:
- Primeiro jogamos às pedrinhas e depois à berlinda!
- Ou ao contrário!
- Eu assim não quero! Daqui a bocado a minha mãe obriga-me a ir para casa e não jogo a nada!
- Mas a berlinda é gira, se forem muitos! Estamos 6, já dá.
- Lembro que para jogar às pedrinhas, dois são suficientes!
- Tu queres jogar às pedrinhas porque ganhas sempre!
Era a voz mais emburrica; mau feitio ouvia o que não queria:
- E tu tens medo da berlinda! Nunca gostas de ouvir as razões por que te lá põem!
Disparatávamos, asneávamos, até que surgia a salvadora:
- Acabamos com a discussão e vamos ao jogo do lencinho! Quem quer?
Fizeram cara feia a emburrica e a invejosa que queria ganhar sempre; as outras, mortinhas por jogar fosse o que fosse, levantaram-se.
- O lencinho que vai na mão / Ele há de ir cair no chão!
E caía, atrás da que tinha maior número de amigas...
Ora, nas noites de Santo António e de São João, a satisfação era maior. A fogueira no meio do Largo trazia a vizinhança para a rua. Quem saltava mais? Quem saltava melhor, sem se queimar?
E o baile começava: “O «balho» anda de quatro / Bem podia andar de nove / Bem podia quem é rico / Ajudar a quem é pobre!”
Outros, mais marotos, preferiam: Ao passar a ribeirinha / Pus o pé, molhei a meia / Namorei na minha terra / Fui casar em terra alheia//.
Aos ouvidos de Santo António e São João soam cantigas brejeiras. Um era casamenteiro, outro também gostava do amor: - “São João era bom santo / Se não fora tão gaiato / Leva três moças à fonte / Leva três e vêm quatro...”
São Pedro, o último no calendário a ser festejado, tem outras funções: “Dos três Santos populares / É São Pedro o mais sisudo / Faz milagres aos milhares, / Tem chaves para abrir tudo...”
Ai, o aroma do rosmaninho a inundar as ruas dos fiéis dos santos! Ai, a alegria da comunhão da festa. E se isto não é a felicidade, por onde anda?
Então, não havia Pandemia. Que fazer, neste ano da graça de 2021? Arraiais não? Como santificamos os nossos santinhos? Coitadinhos!