Edição nº 1695 - 16 de junho de 2021

Maria de Lurdes Gouveia Barata
LAÇOS

Aqui há dias passei numa rua estreita da cidade e numa das casas com meia porta aberta ouvi uma voz feminina trauteando baixinho «Ó Zé aperta o laço / ó Zé aperta-o bem». Não resisti a olhar para dentro e no pequeno patamar da casa vi uma senhora de meia idade, sentada, costurando qualquer coisa e trauteando «que o laço bem apertado / ai, ó José, fica-te bem». Esbocei um leve sorriso e senti um afloramento de saudade por dentro do sorriso, uma saudade de sons da infância: era eu miúda, de férias na aldeia com a minha avó, e a canção passava frequentemente na rádio e as pessoas cantarolavam-na também fazendo renda ou costura ou trabalhos domésticos. Até nós, a miudagem, não cansávamos no «Ó Zé aperta o laço / ó Zé aperta-o bem»… Lembrei-me vagamente da cantora, seria uma Maria Clara… E não é que este passeiozinho me deu para saber algo mais? Só porque a saudade me motivou? O interesse de confirmar esta Maria Clara…
E confirmei. Um resquício da memória não me enganou. Hoje é fácil descobrir coisas pela internet. Confirmei também que tinha sido Rainha da Rádio, só não sabia que fora na década de 60 eleita pelos leitores da revista Flama, que li algumas vezes por oferta de um amigo que lá trabalhava. Associei- -a ainda a um outro êxito: a canção «Figueira da Foz», de que eu gostava. De outros êxitos não tenho a mínima ideia ou… julgo que não tenho. Porém, aprendi coisas interessantes sobre a cantora: Maria Clara era nome artístico, o seu verdadeiro nome era Maria da Conceição Ferreira, nascida em 5 de Outubro de 1923, morrendo com 85 anos em 1 de Setembro de 2009. Fiquei a saber (e apeteceu-me partilhar com os leitores) que casou com Júlio Machado de Sousa Vaz, neto materno do ex-Presidente da República Bernardino Machado, filho do 1.° Barão de Joane, falecido em 1999. Era a mãe do médico e sexólogo Júlio Machado Vaz. Sem me alongar: a sua vida foi produtiva, estreando-se profissionalmente na opereta A Costureirinha da Sé, em 1943, no Porto, ao lado de António Silva, Josefina Silva, Costinha, António Vilar. Seguiu-se a passagem pela rádio, com prémios, e em 1953 representou Portugal no Festival internacional de Rádio, em Marrocos. Participou em filmes, em espectáculos como Serão para Trabalhadores, no Teatro de Revista e tem o seu nome ligado às Marchas Populares. Estabeleceu laços com a sua popularidade.
Não é que as palavras se agarram umas às outras como as cerejas? O laço do Zé trouxe-me a outros laços, porque os diferentes sentidos enlaçam-se como mãos numa dança de roda. O laço do Zé enredou-me – era um papillon (passe o estrangeirismo divulgado), que lhe mudou a vida na letra da canção (e não vou seguir por aí), um enfeite como os laços de fita no cabelo das meninas, tão graciosos, tão leves como borboletas esvoaçantes, tão de moda feminina nos lenços de pescoço a que se faz um laço. E que laços em vestidos de ce-rimónia! E que laços sedutores em fitas de prenda! Tudo recriação e beleza, futilidade e alegria, que a alma também procura.
Mas na tal dança de roda das palavras, vem outro sentido mais profundo, com poiso no coração: os laços afectivos. Em O Principezinho de Saint-Exupéry, no diálogo entre a raposa e o príncipe surge a importância de cativar, ou seja, criar laços. Laços que nos atam a quem amamos, no sentido dum amor abrangente de amizade e de solidariedade, de eu-tu na paixão, tudo sentimentos que se entrelaçam com carinho, consideração, atenção e protecção. Como diz a raposa ao principezinho, se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Manter laços é ainda cultivar as ligações que se conseguem, é igualmente uma responsabilidade que na história do principezinho se aprende, como também na vida. Disse John Kennedy que «o laço essencial que nos une é que todos habitamos este pequeno planeta. Todos respiramos o mesmo ar. Todos nos preocupamos com o futuro dos nossos filhos. E todos somos mortais». Daí que esse laço essencial esteja num caminho de solidariedade entre os homens, que se entrelaçam num mesmo destino e coabitam no mesmo lar que é a Terra, um lar que é preciso salvar em conjunto, enlaçados no mesmo objectivo.
Todavia, há sempre um reverso da medalha no jogo dos sentidos da palavra. Há quem goste de armar o laço com a intenção de preparar uma armadilha para enganar alguém. A inveja, a traição e os interesses mesquinhos são urdidos pela desonestidade. Alguma necessidade de atenção é necessária para não cair no laço, na ratoeira urdida pelas manhas de alguém, esses que não olham a meios para atingir fins que não confessam.
No entanto, vamos deslaçar desta parte. Estávamos a falar de afectos e de beleza, no encantamento duma conquista que é a união entre os homens. É aí que ficamos.

16/06/2021
 

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