Antonieta Garcia
LEIS, SAPATOS E O PAPA FRANCISCO
Ter uma pedra no sapato é uma aflição. Acresce ao mal-estar o facto de os sapatos serem feitos com fôrmas e nem todas se adequarem a todos os pés. Sapato novo morde, deixa borregas, faz calos que se farta! Neste domínio, repare-se como sete palavras apenas podem recusar um noivado: “Não é fôrma para o meu pé!”
É! Isto do calçado tem que se lhe diga. Quem “arranja um par de botas” cria uma situação problemática. Também não foi por acaso que o Presidente do Conselho de Ministros (Salazar) foi alcunhado pelos lusos como “Botas”, o calçado preferido pelo governante. Usava-as em todas as ocasiões e em qualquer estação do ano.
Sobre os modelos de sapataria, a narrativa é longa. Imaginem-se os tamancos, as alpergatas, as chancas, os chinelos de corda, os socos, os “enrodilhados ad hoc” que envolviam os pés, e que foram experimentados ao longo de milénios!!! Queimar os pés no verão, ou deixá-los gelar até rasgar a alma, durante o inverno, aguçou o engenho e fez nascer protetores para os pés, cada vez mais aperfeiçoados.
No tempo dos romanos, as sandálias faziam furor; identificavam a classe social e amparavam os pés. Além disso, o cônsul usava sapato branco, o senador preferia o tom castanho com fitas de couro, as legiões elegiam as botas de cano curto...
Em Portugal, usar sapatos significaria a conquista da carta de alforria, por parte dos escravos. Símbolo da nova condição social protegiam, é certo, mas também feriam os pés. E não era raro verem-se os sapatos pendurados aos ombros ou nas mãos, um costume que fez história. Há uns cinquenta anos, camponeses, quando vinham à cidade, calçavam-se à entrada do burgo. No mesmo sítio, descalçavam-se, para palmilharem os caminhos de regresso à aldeia. Os sapatos, usados durante horas, apertavam e contrariavam o provérbio: “a pé de pobre todo o calçado serve”.
Em Portugal, em 1933, em pleno Estado Novo, andar de pé descalço era proibido por lei. Para cumprir? Como? Considerava o legislador que andar descalço era um “hábito” “indecoroso, inestético e anti-higiénico....” Prejudicava a saúde! Queixavam-se as autoridades que pobres, mendigos, vagabundos não acatavam as leis.... O pé descalço era vício ou miséria?
Até meados do século XX, houve autoridades que faziam vista grossa; os mais duros obrigavam a pagar multa, aos que lidavam mal com os pés apresados.
Sobre esta questão muitas histórias ouviram os tribunais. Desculpavam-se: “Só tinha um pé descalço! O outro estava ferido....” Pagava metade!
Dizia outra: “andava com um pé descalço e outro calçado. Veio a polícia, autuou-me.... Paguei e calei.”
Como escapavam? Aparecia o polícia, “os sapatos iam nas mãos, escorregavam para o chão, enfiávamos os pés. Calçávamo-nos a correr! A gente tinha lá dinheiro para comprar sapatos! Nem pão.... Eu ainda me arrepio, só de me lembrar dos dias de neve e do gelo a que chamávamos “dentes de cão” que rasgavam os pés...
O pé descalço era miséria. Quem tinha sapatos, poupava-os!
Às vezes, eram um luxo? Por exemplo, simplificando, os Papas usavam três tipos de sapatos: uns vermelhos, levezinhos, para calçarem no interior do Vaticano; as sandálias episcopais para celebrar a missa; sapatos de couro vermelho, mais fortes, e com uma cruz dourada, para ambientes externos. Virou esta página o Papa Francisco (e que outro poderia tê-lo feito?) que, diz-se, calça sempre sapatos pretos feitos pelo mesmo sapateiro argentino há mais de 40 anos.