Cesaltina Gilo
RELATOS DE EU
Chama-se assim: Maria da Saudade. Nascida a 1 de Março, valoriza o respeito pelo ser, pela palavra dada, pela força da palavra, pelo vigor da esperança, que é a própria razão de viver o ser, pelo individualismo que assume uma liberdade individual, desde que não seja egoísta – que seja uma realização de si, mas nunca esquecendo os outros, com quem partilha a humanidade. Viver, valorizando o crescimento semelhante ao das flores entre as árvores do vale, na construção da floresta, enriquecendo e embelezando, contribuindo para um bem comum.
Saudade adquiriu um saber empírico, arrastando dissabores duma vida de impossíveis possíveis, alargando alegrias de tranquilidade.
Órfã de pai (com doença crónica) aos quatro anos, foi a mãe querida que aguentou a criação de duas filhas, dividindo ainda o tempo entre a casa e um comércio. Jamais comentava as diabruras da criança Saudade.
Quando perguntavam a Saudade o que desejaria fazer quando crescida, a resposta imediata era: estudar, estudar… Irrequieta, ladina, quando subia ao mais alto das árvores, no topo dizia: isto é tudo meu! como se fosse um grito à liberdade. Se via uma criança passar na rua chorando, ainda lhe batia mais… Hoje não consegue explicar o porquê!
Na escola não era benquista pelos professores. Após a quarta classe, se desejassem prosseguir os estudos, estava legislado fazer um exame de admissão ao liceu. Então, o professor vaticinava os que iriam passar e os que iriam reprovar. Quando chegou a vez de Saudade, disse: tu, é para onde te der…
Na entrada para o ensino secundário, Saudade foi para casa dos tios que moravam em Runa, no Asilo de Inválidos Militares da Primeira Grande Guerra Mundial, onde se encontravam soldados a cumprir o serviço militar, o que justificava a presença de cabos, sargentos e oficiais. Saudade fazia a viagem para Torres Vedras, onde frequentava o ensino secundário.
Um dia, os tios foram esperá-la à estação de caminhos de ferro e, no regresso a casa, o tio disse: agora vais responder a um indivíduo o seguinte: «Cidadão, é preciso que se seja dotado dos mais reles sentimentos que se possam imaginar, com a prova de autor desta carta, para se me dirigir em termos tão incorrectos e impróprios. Já alguma vez lhe dei confiança para isso, seu imbecil?». Recorda com estupefacção que nunca leu a carta à qual respondera!... Não interessada no seu possível pretendente, por intermédio de uma amiga fez saber ao Jeca (assim era chamado) que fora obrigada a escrever a resposta. Saudade fez tenção de descobrir a carta. Quando os tios se deslocaram definitivamente para Torres Vedras, na mudança encontrou-a no sótão (divisão onde costumava estudar). Dizia assim: «Menina Saudade, soube há pouco tempo que tinha estado em Lisboa e não me veio visitar. Estava zangada comigo ou não sabe a minha morada?» Era assim, naquele tempo, uma carta aos quinze anos! Saudade deixa à apreciação aquela resposta impensável, brutal, cruel…
E enquanto mais coisas se passavam, Saudade escrevia nas fechaduras das portas: eu gosto muito da minha madrinha.
Em Lisboa, fez o curso do Magistério Primário. Ainda de Lisboa, comunicou aos tios que iria passar um fim de semana a Torres Vedras. O autocarro onde viajava não parou no sítio do costume. Arrancou, indo por uma estrada desconhecida. Saudade, dirigindo-se ao cobrador, perguntou se o autocarro não parava em Torres Vedras e ele respondeu: «Não, menina, agora seguimos para outra povoação. Só se quiser ficar aqui». «Então fico aqui». O aqui era um local deserto, era de noite, cerca de onze horas. Saudade decidiu aguardar a passagem dos carros com as luzes acesas, escondendo-se atrás das árvores, caminhava então. Assim foi o regresso a Torres Vedras!
Regressou a Monsanto, sua terra natal, onde aguardou colocação.
Exerceu o magistério primário durante três anos em Rochas de Cima, próximo da Partida. Quando se dirigiu para lá a primeira vez, procurou guia que indicasse o caminho, pois a camioneta só a deixava na Partida. Eis uma adolescente de quase dezoito anos perante os primeiros trabalhos! Fez-se de noite aquele trajecto por veredas estreitas, cheio de precipícios e com os receios próprios por essa inesperada situação. A mão de Saudade segura uma sobrinha de quatro anos, sempre aos ombros da tia. Era a desmoralização quase completa, se faltasse a esperança. Saudade dizia: talvez uma ermida onde passássemos o resto da noite…
Com uma alegria enorme, Saudade, muito fora do seu hábito, gritou, gritou… até que apareceu um homem de lampião. Saudade perguntou-lhe onde morava a professora ao que ele respondeu que estavam à espera dela. Chegara finalmente a Rochas de Cima!
Foi conduzida à casa da Senhora Madalena, que possuía uma taberna, onde vendia os produtos essenciais para os gastos das pessoas da terra. O marido era emigrante, tinha três filhos (duas raparigas e um rapaz), sendo a mãe dela (uma santa criatura) que tratava da lida da casa. A mãe da senhora Madalena cozinhava diariamente o caldo de couves que comiam de barranhão, uma grande malga de barro donde se alimentavam todos ao mesmo tempo numa cadência rítmica, para que um não comesse mais do que o outro. Para a professora havia sempre feijão frade.
No dia seguinte ao da chegada de Saudade, pela manhã, ouviram-se foguetes, perguntando Saudade se havia festa, sendo-lhe respondido que a festa era de alegria por a senhora professora ter chegado, porque os nossos filhos têm sido ensinados por regentes (regente era uma professora sem habilitação própria para o ensino, numa época em que houve falta de professores).
A casa, de rés-do-chão, tinha quatro escadas que conduziam à porta da rua.. Sentada nas escadas, Saudade viu mulheres, homens, adolescentes, novos e velhos pegarem-lhe na mão para lha beijarem com todo o respeito. Saudade jamais esqueceria este beija-mão!
O dia seguinte foi de abertura das aulas. Os alunos, conforme a fruta da época, entravam na sala, bom dia, sô professora, pousando na secretária maçãs, pêras e cogumelos (gasalhos ou tortulhos).
Quando Saudade se deslocava à Partida para levar uma injecção, acompanhada por alunos, os resineiros alertavam do lado contrário do caminho: Senhora, não se demore porque, ao escurecer, os lobos podem descer ao povoado. Quando passava um avião, se os miúdos estavam no campo, punham as mãos em atitude de santidade, dizendo: Vai passar um arreplão…
Chegou o fim do ano escolar. Saudade seguiu para a Lameirinha, onde passava o autocarro e era verdadeiramente enternecedor ver os alunos com cestinhos de verga à cabeça, cheios de maçãs para a sô professora.
Regresso a Monsanto. Depois, Saudade casou e foi viver para Castelo Branco. Não exerceu mais o magistério primário. Deu explicações. Mais tarde mudou-se para Abrantes, onde o marido se empregou no Colégio La Salle como Técnico de Contas. Saudade estudou e tirou o Curso de História na Universidade Nova de Lisboa e deu aulas nesse Colégio La Salle. Foi colocada em Idanha-a-Nova como professora efectiva,
Regressou a Abrantes, onde leccionou. Por falta de estruturas, o Liceu de Abrantes instalou-se no Colégio La Salle, pois que os La Sallistas, após o 25 de Abril, regressaram a Espanha. Saudade foi mais uma vez viver para Castelo Branco, sendo hoje professora aposentada do Liceu Nun’Ávares.
Saudade teve três filhos em Castelo Branco e dois faleceram: uma em Abrantes com vinte e nove anos; um rapaz em Castelo Branco com quarenta anos. A filha mais nova passou pela tristeza das tristezas com estas perdas, unindo o sofrimento ao dos pais. Mas a esperança impulsiona a vida para a vida, o sol continua vindo junto a nós, dando-nos um bom-dia, um bom-dia que abrange outro dia, que será o reflexo de outros mais, de tranquilidade futura. Será um futuro de ser? Um futuro de palavra dada? O ser continua sendo o respeito por si próprio, o respeito pela palavra dada na força da palavra. Georges Gusdorf, no livro A Palavra diz que «o significado fundamental da palavra é posto em evidência pelo carácter sagrado que lhe é geralmente reconhecido, fora de qualquer referência religiosa».