Edição nº 1712 - 20 de outubro de 2021

Maria de Lurdes Gouveia Barata
FOTOS, MEMÓRIA E RECORDAÇÕES

Abri por acaso uma daquelas gavetas que raramente se abrem, estão esquecidas na parte menos à mão dum móvel. Pelo esquecimento a que estão votadas fica uma certa desarrumação, sempre se foi acrescentando uma coisa ou outra sem ordem e também há a desarrumação da memória que falha sobre o conteúdo da gaveta. Abri-a porque queria guardar uma dedicatória antiga de aluno (que também encontrei por acaso) e, até lugar melhor, ficaria ali. Que confusão! Remexi, assim por alto, coisas misturadas e vislumbrei uma foto a preto e branco, tirei-a por curiosidade, fechei a gaveta, deixando tudo atafulhado.
Comecei a olhar a foto, quadrada, brilhante e nítida, tirada pelo meu pai, eu e o meu irmão pequeninos, de mão dada, encostados na porta da torre do relógio, granítica. Eu primava com um laçarote, ele primava por um caracol em canudo a descair um pouco sobre a testa. Estava séria, o meu olhar parecia-me triste, longe. O dele tinha uma nota mais alegre, avivada pelo leve sorriso. Calculei três, dois anos respectivamente. Estava de pé, fico esquecida, surgem imagens carregadas de infância e da ternura de momentos tão longe, ouço mesmo risos… Foi repentino o momento. Vejo que estou de pé, vou sentar-me. Fico com a foto perto de mim. Ponho-me a pensar como ali está retido um momento. Penso que talvez o exemplo do meu pai, que nos apanhava em fotos (e temos ainda bastantes, não sendo isso muito frequente na época), fosse o começo de um gosto pela fotografia, que foi sempre aumentando.
Sonhava ter uma máquina fotográfica! Queria ser eu a fixar as imagens e a ter as imagens que quisesse. Não tinha bem a consciência do que procurava nesse sonho além de querer ter as minhas imagens. Lembro então a grande alegria que tive (teria 10 ou 12 anos), quando a minha tia mais querida (querendo comprar uma máquina fotográfica nova), resolveu oferecer-me a velha. Eu senti uma alegria tão grande, que nem conseguia exprimi-la: sorri por fora, agradecendo, mas nunca esqueci uma emoção escondida, que guardei para mim: parecia-me que estava a debulhar-me em lágrimas por dentro, tal era a felicidade.
E assim eu tive a minha primeira máquina. Não havia sítio que eu não achasse importante para fixar, mas tinha de gerir opções, porque os rolos fotográficos eram caros. Mais tarde foi o encantamento das fotos a cores, quando a vida me permitiu outras máquinas fotográficas. Por vezes, passava longo tempo vigiando e fotografando uma abelha que procurava pólen. E as flores? Faziam as minhas delícias para uma imagem que eu queria num certo ângulo e na expressão dum sentir.
Fotografar e fixar. E ao fixar agarro a vida naquele momento e essa fixação é única e irrepetível. Olha, como tu eras! Olha, como eu estava! Foi aquele clique que fixou o instante e vai avivar o que a memória vai delir. Do sentimento acutilante do efémero é que cresceu o meu amor pela fotografia. A avó, que já não tenho, deixou de ter as palavras que descreviam uma bisavó e que eu construía na imaginação. Que pena não ter o retrato duma bisavó à la minuta.
Gosto de fazer retratos. E tenho retratos de pessoas que partiram, continuando a conceder-me um sorriso. Gosto de fotógrafos que fazem arte, mesmo que seja ao serviço do seu trabalho comercial para ganhar a vida, porque a sua profissão preserva muitos momentos de vidas. Disse Andy Warhol: «O melhor de uma imagem é que ela nunca muda, mesmo quando as pessoas nela mudam». Se, em certo sentido, «fotografia é verdade», hoje a técnica pode alterar uma foto para prejudicar ou salvar alguém, há montagens que oferecem perigos. Mas deixa de ser a fotografia original.
A intenção do fotógrafo, o sentimento dele ao fixar a imagem são invisíveis, a não ser que abra uma pequena porta – uma legenda, por exemplo – para estar lá parcialmente. Todavia, a fotografia pode encher a alma do receptor. Lembro-me, quando adolescente, comprei um postal ilustrado: uma fotografia de mar azul, com o branco bordado pelas ondas que morriam na praia, umas dunas no primeiro plano, um segundo plano com uma mulher de costas, sentada nas dunas, com lenço branco na cabeça, imaginando-se que olhava o imenso azul do mar. A minha paixão pelo mar despertou em mim desde a primeira vez que o vi. Levava o postal (fotografia) na pasta. Nas aulas que me aborreciam mais, punha disfarçadamente o postal sobre a carteira, entre papeis, e olhava aquele mar e sonhava muito. Saía da aula. O mar era uma realidade longe, ansiada, que a imagem tornava perto e parecia-me até sentir um cheiro a maresia e ouvir o marulhar das ondas.
Quando o livro José Pedro Barata – Fotógrafo. Imagens de uma Vida veio a lume (2005), estando eu ligada à publicação dessa obra, escrevi um soneto pré-introdutório, que exprime um pouco do meu sentir sobre a fotografia. Aqui o deixo:

Fotografia

É o instante. Fica fotografia!
Marca tempo sempre a deslizar…
Fixado no papel para perdurar
E o papel desfaz-se na ventania

da vida não ser o que se pretendia,
gerações de continuar e findar
desse mesmo tempo a devorar
o engano humano que servia.

Mas entretanto fica a imagem
a passar na mão dos que sucedem.
Perdura como coisa merecida!

Os instantes idade-tempo miragem (?)
durante algum tempo não se perdem
no engano de agarrar a vida!

20/10/2021
 

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