Edição nº 1715 - 10 de novembro de 2021

Antonieta Garcia
LISEUSES - LEITORAS E ADEREÇO PARA AQUECER

- Olha as Liseuses!
Estavam no fundinho da arca e mostraram-se muito dobradinhas, com direito a lembranças velhinhas.
As liseuses, em francês, são leitoras. Como acontece com liseurs, os leitores. Mas as que a memória guardou, no feminino, ficaram peças de roupa e tão arcaicas que a moda deixou-as cair. O adereço francês foi acolhido pelo português, sem tradução... (Que é do equivalente masculino?)
Lembro-me de ter ficado extasiada, quando ouvi / vi “provar” uma “lisase” que, mentalmente, grafei à portuguesa. O encanto de uma palavra com um som musical, requintado a fechar-se a meio da sílaba emprestava nobreza a quem a proferia. Só em palacetes e casarões afins viveria este tipo de atavio noturno. Convenhamos que os padrinhos de batismo tiveram bom gosto e, dita em francês, a “lisase” ficou por cá.
As ditas peças compravam-se em lojas frequentadas por gente endinheirada; vestiam-nas senhoras que, em termos culturais, no mínimo, tocavam piano e falavam francês. E a lisase, para não perder a majestade, exigia mestria fonológica do “a” fechado no meio dos “esses”.
Lá em casa, ninguém usava lisases, mas havia uma tia que frequentara um colégio de aprendizes de costura, modas e bordados que as confecionava. Encomendavam-nas, senhoras muito finas, muito, finas; queriam obras únicas no guarda-roupa e o trabalho manual, da minha tia, era bom e recomendava-se. Tricotadas em lã que não “picava”, aconchegavam muito. O branco, o cor-de-rosa, o amarelinho pintainho, o azul... (raramente o verde, porque quem se veste de verde com a beleza se atreve!) eram tons preferidos. A lisase era larga, confortável, fofa... Por cima do pijama ou da camisa de dormir, aquecia, “afrancesava” e modernizava as senhoras, no tempo em que a moda vinha de Paris.
- Lisases, tia, porquê?
- Olha, filha, esta camisolita pequena e curta protege do frio, quando há o hábito de ler sentada na cama. As botijas, os sacos de água quente... de pouco serviam...
Era isso! A lisase pertencia ao cenário das donzelas de província que se deitavam com as galinhas e....liam, liam, liam... Amavam de paixão as lisases as damas da Beira Interior...
Nas casas frias, sem a Televisão (aguardava-se o parto) e uma telefonia sozinha na sala... ganhavam os livros! As lisases eram utilíssimas! Despiam-nas, quando o sono chegava. Os xailes eram tão rurais, tão fatelas, tão desconfortáveis sem botões, aselhas...
Neste quadro, pareceu-me ser justo reivindicar à minha tia a oferta de uma lisase.
- Para quê? És muito nova! As meninas da tua idade vão cedo para a caminha; no outro dia há escola... Antes de adormecer, aconchegas os cobertores e falas com os teus botões...
Protestei em silêncio. Prometi-me: Quando for grande hei de ter lisases para ler. Bonitas!
E cheia de vaidade e determinação a haver, montei cenários das lisases e da leitura. Ficaram-se pela ficção! As leituras, na terra fria, fazíamo-las na cama, embrulhadinhas em cobertores e mantas. Entretanto, uma mão gelava, a outra virava a página, os pulsos começavam a doer, alternava-se o braço a pôr de fora – ora o direito, ora o esquerdo - , até à incómoda reviravolta de barriga para baixo, pescoço levantado... Era o fado, “Cheia de penas”, de Amália Rodrigues, a perseguir a roupa tão desejada?
Depois, chegou a televisão e mandou para o fundo das arcas as lisases. A leitura, na cama, sofreu um rombo tremendo. Afinal, era possível ver TV sem frio, as mãos cobertas... Quando os comandos apareceram, em menos de um minuto chegava-se ao programa escolhido e as mãos e braços continuavam quentinhos...
Achei-me assim com as lisases. As que herdei, dormitam ao fundo da arca velhinha, há mais de meio século!

10/11/2021
 

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