Antonieta Garcia
MOLÉSTIAS...
O cardápio de enfermidades que nos levam desta vida para outra (melhor?) é variado. Contam-se muitos nomes; alguns, novíssimos, entram na modernidade, outros, velhinhos, mal se têm de pé.... Sobrevivem em falas enfronhadas na memória, em busca de ressurreições? Não serão significativas as falas que se exumaram; a partir das epidemias com o seu contexto de fome e morte, elegeram, por exemplo, “pandemia” um vocábulo completamente grego de alma e faminto de fama. Já nos tínhamos encontrado com a endemia, a epidemia.... Faltava-nos a pandemia. Em 2022, estamos quase doutorados no vírus que já estragou, no mínimo, uns anitos de vida a toda a criatura. Era bom que descansasse em paz! Desejamos todos!
Covid é uma designação que vai bem com o nosso tempo poliglota. Como foi construído? Os padrinhos tinham pano para mangas para dissertações sobre o batismo de pandemia, mas a celebridade adveio-lhe sobretudo da mortalidade que o malvado vírus distribuiu sem lei nem grei. Quem o tolera?
E continua a morrer-se da Covid e descendentes, que operam como e onde podem.
Também constam dos “tormentos” atuais, um enfarte... um cancro... Mas a fama difamou definitivamente o moderno vírus e afilhados.
Em meados do século XIX, falecia-se mais de “moléstia”, palavra que antecedia a designação de múltiplos males-moléstia cerebral, moléstia gástrica, de catarral, sarampo, bexigas, ataque de gota, fluxo de sangue... De étimo latino, significou pena, tristeza, mágoa, embaraço, incómodo, achaque; os sofredores de moléstia eram franzinos, débeis, enfastiados, enfermos. A moléstia afetava o organismo, física e/ou mentalmente e constava em vários diagnósticos. Que nome lhe foram pôr!!!
- Parece a moléstia! - dizia-se de alguém sem energia, sem ânimo... Os pés já puxavam para a terra, como comentava o meu avô, quando alguém, pálido e cansado, arrastava os sapatos em diálogo lento com o chão que pisava.
- Parece que apanhou moléstia! - lamentavam.
Paralelamente, às enfermidades que provocavam horrores chamavam-lhes “uma coisa má, um tumor, um mal mudo...” Outras moléstias? A tísica alarmava, a apoplexia assustava, o aneurisma temia-se.... Morriam os velhos, mas a Senhora das Tempestades (Manuel Alegre) nunca esqueceu os mais novos.
No Fundão, funcionava um Hospital destinado aos mais pobres. O ferrete da miséria perseguia os doentes internados na instituição. Desde as Invasões francesas que Livros de Assentos de Óbitos registam mortes de soldados que perdiam o nome, a vida.... Inumados em cemitérios do Fundão, no século XIX, contam, por certo, narrativas-tristeza de Zés-Ninguém esquecidos.
Com a Covid dos nossos dias, apesar do cansaço dos trabalhadores da área da Saúde, do número excessivo de vítimas mortais, percebeu-se a importância de compor uma prece laudatória: Serviço Nacional de Saúde: venha a nós o vosso reino.
A moléstia foi transferindo e reduzindo o significado, ao longo dos tempos. Ainda lembro da lamentação:
- À galinha pedrês, apanhou-a a moléstia! A ver se lhe damos azeite a engolir.... Pode ser que arrebite!
Estes curandeiros tinham à mão remédios e palavras divinas para lograr resolver estes males.
- É pior que a moléstia! Não faz nada! Com aquele ar doentio não anda cá muito tempo!
Sem dúvida, a moléstia ganhou má fama: molesta que se farta!
Em suma, vividos os anos da Covid, muito gratos estamos aos que, por amor ao próximo, com saber e dignidade, possibilitaram o acesso igualitário a tratamentos e com a mesma atenção. Ninguém deixou de ser tratado por ser diferente, por ser pobre!
Afinal, não foi protagonista do processo a caridade, em si mesma uma moléstia, a necessitar de exercitar a fraternidade, e a igualdade. A moléstia é uma palavra feia. Baba-se enjoada e desistente. Vai-se esquecendo, porque o Serviço Nacional de Saúde há de valer-nos.