Edição nº 1732 - 9 de março de 2022

José Dias Pires
TRANSFORMAR A MEMÓRIA DO PASSADO EM REALIDADE PRESENTE

Sempre que nos aproximamos do futuro, o que habitualmente se assinala e valoriza como aspetos mais significativos do património albicastrense parece estar a diluir-se em discursos de conteúdo insípido, fundamento frágil e, principalmente, sem debate nem contraditório.
Nas últimas décadas fomos algumas vezes (mal) confrontados com abordagens de preocupação patrimonial com recortes eruditos mais ou menos históricos, por vezes parecendo aparentes rascunhos escolares (no mau sentido) ou panfletos turísticos (de facto pouco eficientes) sem uma efetiva sustentabilidade documentada.
Pensar o património é saber como construir a memória social, dando à relevância do património edificado a fundamental essência do todo albicastrense que são as pessoas - o nosso património social e razão comunitária principal.
Ultimamente têm-se gastado rios de palavras a propósito do bairro do castelo e da sua importância no centro histórico da urbe albicastrense.
Mas será que as questões patrimoniais e a memória social de Castelo Branco se inscrevem e esgotam apenas nesta área urbana que importa recuperar e não esquecer?
Em Castelo Branco o seu património arquitetónico e monumental (muito dele de relevância relativa, embora haja alguns exemplos muito relevantes) e os seus lugares de vida (esses sim muito significativos porque implicam pessoas, vivências e narrativas geradoras de memórias sociais) deviam contribuir para a forma como as pessoas interpretam as suas experiências nos locais onde as vivem, e determinar um conjunto de significados e vivências que propiciem a memória coletiva e passem a fazer parte da sua herança cultural e social - o seu património.
De facto, na nossa comunidade, a memória da cidade tem sido marcada por conjuntos de recordações e histórias que dela emergem, nem sempre resgatadas nos tempos e nos lugares devidos por forma a permitir compreender o seu todo.
É inquestionável que há urgência em promover a memória albicastrense sem esquecer que é a identificação local por intermédio da relação entre a memória e a história que conduz uma cidade à cidadania.
Em Castelo Branco os desafios das memórias próximas têm três principais referências: as memórias do mundo operário e do mundo empresarial (das práticas, dos lugares de vida, dos espaços de convívio e de lazer e da organização associativa) e do mundo rural que quase desapareceu nas fronteiras da cidade e que conjuga o enraizamento de tradições e costumes de muitas práticas comunitárias que decorreram dos tempos intensos da azáfama produtiva da cortiça, do azeite, da moagem, da metalomecânica e dos percursos diários, semanais e sazonais dos que, originários do mundo rural, alimentavam com produtos frescos a cidade.
São muito poucos os que nesses mundos fizeram vida que ainda estão entre nós carregados de um importante conjunto informativo e formativo que importa não perder, pois só eles conseguirão reconstituir as memórias enriquecedoras do nosso património.
A verdadeira preservação histórica e patrimonial (e a sua necessária recuperação) não existirá sem se ter em conta a condição da diversidade cultural. A preservação e a recuperação obrigam-se a ter a capacidade de relacionar todos os aspetos que constituem um determinado local.
Estamos perante os desafios e os compromissos de tratar bem as memórias e oferecer aos cidadãos a possibilidade de se identificarem com os lugares onde vivem e a comunidade que com eles constituem.
Trata-se de politizar e comprometer, na melhor aceção das palavras, para um propósito comum: enraizar a convicção de que uma cidade sem memória é uma cidade sem história, sujeita a que qualquer oportunismo sugue o que ela tiver de melhor e depois a abandone, deixando-a estagnada histórica, cultural e socialmente.
Então o que é necessário ter em conta?
Em primeiro lugar, as relações entre o interior e o exterior da cidade. O que a cidade aparenta, o que é e o que devia obrigar-se a ser.
Em segundo lugar, as relações de predomínio e perspetivação de interesses que na cidade ou a propósito dela se manifestam.
Há, pois, a propósito da dialética entre património edificado e património social, duas questões que se destacam.
Primeira questão: valerá a pena vir viver ou passear em Castelo Branco?
Vivemos demasiado tempo desatentos às questões essenciais e enchemos a boca com as nossas potencialidades. Só que as questões geradas pela desatenção pública e privada já ultrapassaram o centro histórico e alastraram-se ao centro cívico e aos velhos bairros exteriores às antigas muralhas.
Importa trazer as pessoas a morar, a produzir, a vender e a comprar nos espaços cuja riqueza e atratividade comunitária e turística se perderam para um crescimento urbano nas periferias que desrespeitou os centros cívico e histórico da comunidade albicastrense.
Então o que temos nós, em Castelo Branco, para mostrar e oferecer?
De facto, apesar de alguns muito bons exemplos que importa potenciar e mostrar, por fora e por dentro, o nosso património edificado é notoriamente inferior ao nosso património social.
Acresce que o património museológico e museográfico albicastrense (pensar-se o museu e fazer-se o museu) enferma de uma falta de perspetiva sistémica geradora de um roteiro sustentado que dê dimensão e importância aos centros de memória comunitária para que estes sejam espaços de organização e racionalidade e não simples depósitos de memórias vividas ou reconhecíveis pelos grupos sociais.
Existe, em Castelo Branco, uma prática cultural importante, multifacetada e profícua. Será que tem aproveitamento real, contínuo, sistemático e estrategicamente respaldado, ou continua a perder-se ao ser, com frequência, ultrapassada por escolhas, muitas vezes de qualidade igual ou inferior, vindas de fora e trazidas pelos ditames de uma determinada moda acomodada no princípio da “galinha da vizinha”?
Importa também não esquecer as questões das ofertas produtivas diferenciadas (tradicionais ou inovadoras); as ofertas educativas de referência e referentes aos interesses locais, regionais e nacionais; as ofertas sociais, especialmente serviços comunitários que façam a diferença e as ofertas gastronómicas (espaços e ofertas de excelência determinadas pela qualidade e singularidade).
Todas elas devem ser delineadas, potenciadas e oferecidas, sempre que possível no centro histórico.
É minha convicção que esta conjunção, mais abrangente, do património edificado com o património social albicastrense, poderá constituir a melhor resposta à questão original:
valerá a pena vir viver ou passear em Castelo Branco?
Valerá, se, no que respeita à intervenção material, soubermos que o grande desafio que enfrentamos é o de não temer restaurar e preservar o património edificado sem pretender conservar o antigo ou fixar o moderno, orientados pela produção de uma cultura que não repudie a sua própria história, mas que possa dar-se conta dela pela participação nos valores simbólicos da cidade, como sentimento de pertença, tornando as pessoas muito mais politizadas e comprometidas com o património edificado e o património social.
Na nossa cidade, os lugares de memória exteriores e interiores (em espaços comunitários ao ar livre e em espaços museológicos em recintos fechados) podem e devem ser considerados esteios da identidade histórica e tratados como tal, para que o quotidiano não se afaste da tradição e do costume, não contribua para o esquecimento e o desprendimento do passado e promova verdadeiramente interesse turístico.
Mas nada serão sem acessibilidade. Acessibilidade formal e material, facilitadora de mobilidade a quem dela não dispõe e acessibilidade compreensiva intrínseca nos seus conteúdos, geradora de empatia.
Estou certo de que, transformada em cidade (multiplamente) inclusiva e cuidada, valerá a pena vir viver ou passear em Castelo Branco.

09/03/2022
 

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