Edição nº 1737 - 13 de abril de 2022

José Dias Pires
TER DUAS CARAS OU O REI NA BARRIGA (E A CULPA NÃO É DO FEIJÃO FRADE)

Escrevo, porque estou a começar a ficar farto do livro das caras.
Há quem diga que, como muita (fraca) gente que por aí anda, o feijão-frade tem duas caras. A verdade é que o dito cujo (feijão) não se gaba da sua coerência, não confunde adesão com aderência e muito menos sucumbe às conveniências próprias e aos interesses instalados, a não ser que uma boa sardinha o convença a perecer (em coletivo).
Em boa verdade, o feijão-frade não tem exatamente duas caras ou, para ser mais preciso, tem uma cara enorme e mais clara, e uma carinha ridiculamente pequena e mais escura. Logo, sugerir que uma pessoa pode parecer-se com um feijão quando tem dupla falta de personalidade, ou quando é um anjinho pela manhã e um diabo pela tarde, é atribuir pouca virtude à comparação.
Contudo, o uso repetido da expressão ganhou laivos de tradição e até acabaria por estacionar na história paralela de Portugal.
Não sei se conhecem, mas existe nos Paços do Concelho de Guimarães uma estátua com duas caras que é, pela voz do povo, contextualizada por uma lenda: A Lenda do Guimarães Duas Caras.
Tudo teria começado na batalha de al-Kasr al-Kebir, a 4 de agosto 1578.
Debaixo de um calor capaz de grelhar um camelo, o exército comandado por um tal D. Sebastião (um mal preparado e juvenil general sedento de glória), enfrentou, em infeliz demanda, os exércitos sarracenos e viria a precipitar Portugal para uma das mais negras páginas da sua história.
Consta que num dado momento do confronto, as tropas portuguesas são surpreendidas por um repetido ataque do inimigo, gerador de desordem, anarquia e baixas incontáveis a que se teria juntado uma tempestade de areia para apimentar o caos.
O imberbe D. Sebastião, ao antever o final trágico, procurou escapar com vida acompanhado de sete nobres portugueses entre os quais estaria um tal de Baltazar Pacheco de Alcoforado, a quem chamavam “O Guimarães” por nessa cidade ter nascido.
Pelo deserto, rumaram a sul numa tentativa de escapar ao fim anunciado. Muitos dias depois, atacada pela sede e pela fome, a comitiva real transformou-se num grupo de oito desgraçados à procura da salvação e de comida.
Desesperados, decidiram sortear o que, entre eles, se sacrificaria para matar a fome dos restantes. Foi aí que aconteceu a real desdita: D. Sebastião seria o Agnus Dei ao qual não houve sangue nobre ou autoridade divina que o salvasse. Assim renasceu entre os sobreviventes a luz da esperança.
Por ironia, ainda não estavam digeridas as carnes sebastiânicas quando avistaram a aproximar-se da costa uma nau, e portuguesa, que os resgatou (depois de terem jurado entre si jamais revelar o acontecido). Dos sete sobrantes apenas um se salvou no naufrágio que aconteceu junto à praia de Carcavelos. E quem se salvou? O Guimarães, que viria a ser considerado o único herói sobrevivente da trágica batalha de Alcácer Quibir!
Guardaria o melhor que pôde o seu segredo, apenas confessado ao padre Inácio (Laranjo).
Após a sua morte, a população entendeu ser devida uma estátua em homenagem ao herói da terra. O padre Inácio, conhecedor da verdade que não podia revelar, conseguiu convencer o escultor a colocar uma segunda cara na zona do ventre. E assim ficou a estátua do Guimarães com duas caras (como o feijão frade) ou com um rei na barriga (afinal como tantos que por aí andam em estéreis e inconsequentes batalhas).
Dessa forma, ou quase, o desprezível feijão frade (sem hábito) passou, afinal, a ser como certos heróis canibais: a ter duas caras (mas nenhum rei na barriga, diga-se).
O feijão, contudo, é saboroso, tem personalidade e é de confiança (quando não tem bicho). As pessoas de duas caras são exatamente o seu oposto: pela frente são uma coisa e por trás outra. Como não têm caráter mudam de posição conforme as circunstâncias e os interesses e acabam por ser socialmente desqualificadas e desprezíveis embora se julguem muito valorosas: estão sempre cheias de bicho, mas ataviam-se (mascaram-se) de sãs e passeiam-se sempre com o rei na barriga em demanda das novas batalhas de al-Kasr al-Kebir que travam, quais feijões frades, no livro das caras — as novas plataformas dos ignorícias (os ignorantes que querem à tripa forra ser notícia).
Bom proveito e comprimidos de carvão (para os gases).

13/04/2022
 

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