Edição nº 1750 - 13 de julho de 2022

José Dias Pires
DIGERIR AS IDEIAS

Palavras de Júlio Novo, um cego que tem por companheira a coruja Liberdade:
Digerir as ideias é um processo difícil, implica a prática de duas atividades esquecidas e empurradas para as sombras do desinteresse e do abandono: a leitura e a escrita.
Numa das minhas saídas noturnas, guiado pela minha companheira Liberdade, descobri um espantoso, e inesperado, leitor que tem trazido muita luz à minha vida em noites de lua nova. Chamam-lhe Gustavo Cinza, é colecionador de livros e, sei-o há pouco tempo, ganhou à nascença a cegueira das cores que lhe diminui muito a visão diurna e lhe torna difícil discernir o colorido de tudo o que o rodeia. É, na prática, um cego que vê apenas o preto, o branco e alguns tons de cinza. Designam tal disfunção por acromatopsia.
Diz-se leitor de poesia. Todas as noites de lua nova, alcandora-se no varandim da Comuna dos Cegos Leitores e, muitas vezes, improvisa a partir do que as emoções lhe ditam.
Descobri que também ele tem por companheira uma coruja. Aliás, uma coruja muito especial - é cega do olho direito e, como é fácil imaginar, se chama, ou lhe chamam, Camões.
Começa sempre as suas sessões de leitura falada com esta irónica introdução:
- Muito bem, à noite todos somos pardos. É sempre um desatino conseguir saber bem a cor que de facto tem quem se cruza no nosso destino. Será cor de lua nova (ou será cor de pantera?) quem ali está à espera apenas para me pôr à prova? Serão cor de cinza morna (cor de caça descansada) quem a meio da madrugada em galope se transforma? Para que a inspiração me não fuja, entre todas, a cor de que mais gosto é a não cor cinzenta suja da Camões, a minha coruja.
Na última lua nova, depois das habituais primeiras palavras, leu em voz alta o soneto do Triste Rio que, se a memória me não falhou quando o teclei, era assim: Para onde correm tuas águas, triste rio, ao Céu escondendo afrontas que ficaram mirradas na tua foz onde não param, se hoje é sempre inverno, mesmo no estio? Até a esperança é, em ti, apenas arrepio, vencida nas promessas que ficaram dos malfadados vates que ignoraram os que, no verde azul, sonharam rubro desafio. Afoga, se puderes, dentro de ti, esta desdita que é termos, entre nós, quem se aproveite, do que Deus não quer e o Demónio esquece. Haverá, rio magoado, quem contigo compita os limos e os fundões que são deleite de quem nos mata quando morrer merece?
«Mas esse não é um soneto de Camões?» «A minha companheira não escreve, ajuda-me a ler.» «Não me refiro à coruja, refiro-me ao poeta.» «Sim, a Camões é poeta, à sua maneira.» «Imagino, mas este soneto é de Luís de Camões, não é?» «Pode parecer, mas é meu. O soneto de Camões começa assim: Correm turvas as águas deste rio…» «Agora me lembro: já o li.» «Ainda bem, fico muito satisfeito por saber que lês. Espero que leias por prazer. Tenho lido muito e de tudo um pouco. Algumas, são leituras de pura descoberta, maravilhosas, ajudam-me a aprender como dividir as águas na minha forma de ver as coisas e de digerir as ideias. Outras, pouco me oferecem mas, apesar disso, contribuem para a compreensão da diferença entre personagem e pessoa, são uma boa ajuda para enriquecer o meu vocabulário e, por oposição ao que lhes falta, instigam a minha imaginação e abrem-me as portas para entrar no Grupo dos Conspiradores das Palavras Brancas. Ah, não te esqueças: nenhum destes rios têm águas. São rios de palavras. Palavras brancas.»
E mais não disse.
Também não me atrevi a perguntar o que era o Grupo dos Conspiradores das Palavras Brancas, contudo, o conceito agradava-me sobremaneira. Regressei a casa calcorreando, em cada passo, os caminhos da leitura, da reflexão, do questionar e discernir sobre o que e porque se lê. Devo tê-lo feito em voz alta, ou então, o que não me parece provável, a minha desunhada companhia, para além de voltar a saber voar, ganhou competências de leitora de pensamentos. «Tens razão, Júlio. Quem reflete, costuma criar, projetar, arriscar, duvidar, perguntar, responder e concluir. São estes os sete passos que antecedem a imaginação criadora que leva à escrita.» «É por isso que escrevo.» «Ainda bem. Estás bem perto da chave das portas do Grupo dos Conspiradores das Palavras Brancas.» «E tu conheces a fechadura?» «Não é em vão que me chamam Liberdade.»

13/07/2022
 

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