Edição nº 1755 - 24 de agosto de 2022

Elsa Ligeiro
NO NOSSO TEMPO

Há dias, em conversa de esplanada, uma velha amiga referiu que Alcains e o Mundo estavam mais pobres e desagradáveis que nos anos oitenta.
Contestei a sua opinião acusando-a de ter envelhecido e de já utilizar a frase “no nosso tempo”; chavão que se utiliza para iniciar um relato de juventude. Um tempo em que, individualmente ou em grupo, recordamos com algum protagonismo, onde tudo seria intenso e se guarda na memória como uma idade de ouro irrepetível.
A relação que estabelecemos com a cronologia histórica é pessoal e multifacetada; povoada de equívocos que tentamos explicar à nossa maneira.
Pessoalmente, recordo com nostalgia o passado e fixo-o no quintal, que ficou para sempre na casa da infância; onde os prodígios aconteciam com a diversidade das estações: da terra regada com a água do poço no verão pelas mãos da avó; o trabalho de enxertia do pai que transformou a maior laranjeira do quintal num ramo amarelo de limões.
E recordo como alta tecnologia o transístor de plástico de cor creme de onde me chegavam notícias do mundo, algumas trágicas e outras ancestrais como a Carta do Chefe Índio ao presidente em Washington na voz de Júlio Roberto, o filósofo da minha infância.
É a esse transístor que devo a consciência da pertença a um mundo mais vasto que o quintal da velha casa que acabou por ser vendida para uma nova construção. Quintal onde esperava o “pão com manteiga” e as crónicas, ao sábado, de Fernando Assis Pacheco, muitos anos antes de o transformar em poeta residente na minha estante dos bem-amados.
É graças a estas memórias de um passado que agora me parece idílico (com os medos e angústias já acomodadas ou destruídas pela maturidade do pensamento) que amo a Rádio; aparelho de donde me chegavam também as aspirações de um mundo que se misturava com as hortênsias em rosa, azul e branco, que rodeavam a escadaria de pedra que separava a casa do quintal; e a dos pais da dos avós, sem grades nem muros.
Sem qualquer fronteira, onde o quintal era de todos, com as suas oliveiras, laranjeiras e uma raquítica figueira que era a vergonha da família se comparada com a frondosa e gigante que crescia no quintal da ti Lúcia Preta, rainha dos figos lampos de todo o Bairro das Flores.
Retomando o fio da meada, apesar deste idílio com o quintal da minha infância, nenhum tempo se compara ao presente e, arrisco a afirmar, ao nosso futuro.
Um presente de novas oportunidades em que as soluções, é certo, ainda não estão registadas em qualquer manual.
Apresentam-se ainda como desafios à nossa inteligência e sensibilidade; e ao nosso século pessoal que começa a contar no dia do nascimento. Acredito que quem divide a vida por dois séculos consegue tornar mais visível a palavra Futuro.
A tecnologia não é a ameaça; a velocidade aparentemente incontrolável do nosso quotidiano é apenas um desafio a novas posturas da nossa humanidade.
A morte de deus, anunciada por Nietzeche, é uma falácia. As guerras continuam a ser religiosas ou de fronteiras (como na Europa).
Apesar dos Direitos Humanos reconhecidos (mas não respeitados) por todos, as questões essenciais permanecem ainda em discussões primárias.
As perguntas ancestrais do princípio (como as do fim) do mundo continuam a ser um enigma (bem mais complexo do que o da Esfinge), para as quais procuramos ainda narrativas científicas ou espirituais com que tentamos definir a nossa humanidade.
Mas estamos vivos, respiramos com as árvores e todos os outros seres. Partilhamos um território comum; e enfrentamos as calamidades naturais e as consequências dos nossos erros sociais.
Faltam-nos ainda muitas aprendizagens para reconhecermos o valor da sabedoria dos livros de todas as religiões, da literatura e da economia, essa ciência social que reúne e distribui e que só será de equidade se nos libertar do desejo de possuir tudo e todos. De consumir a uma velocidade tresloucada, no limite que comporta um corpo humano.
Para este problema há que inventar um travão mecânico ou de mão, mas sempre guiados pela memória e pela inteligência de compreender antes de executar.
Espero que saibamos resistir ao frenesim apostando na comunidade; que saibamos olhar com coragem novos caminhos e acolher todos os que podem e devem fazer-nos companhia.

24/08/2022
 

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