Edição nº 1756 - 31 de agosto de 2022

José Dias Pires
O MAR E A TERRA NÃO RESISTEM AO CARVÃO DOS TEMPOS

O mar tem um traço a separá-lo do céu. Maior que a maré, maior que o mar.
Na terra procuramos o mar absoluto. Aqui, onde os gafanhotos não saltam montes, espetados na areia, o que de mais perto os toca é o longe.
Mar e céu.
Parecem condenados ao eterno imobilismo: seriam peixes, se não balissem por aí.
O céu, a terra e o véu da serra julgam que entram mar a dentro, onde, no verão, as gaivotas se suspendem, imensas, intensas, densas, como se o mar e a terra se tivessem. E eu julgava-me gigante olhando as formigas.
Mar, areia, séria, sereia, maresia, mareia, seria? O murmúrio, os regatos, o trinar, os balidos. Deitada, esperando um aconchego, a serpente redondeia pela encosta a cima.
Da orla chegam palavras: a gota, a greta, a gruta, a pedra, a perda – todos os dias é inverno no mar e as formigas carregam as palhas, as folhas, os grãos. Às vezes chegam búzios à praia: dinossauros e ovelhas.
O mar não faz o género e o sopro do vento, quando à terra chega acariciando as copas, quer poupar o coração: alinhamentos desalinhados, engraçado, invejoso, doce como os gatos. A nuvem, olha-se: vem nua à espera de ser e está sempre a agitar tudo o que gostamos. Adivinhar, entre os recortes, todas as rotas do mar e da areia onde o sabor é ignorante, e agradecemos os gestos refrescantes do olhar que não cabe no que é a montanha.
Se for urgente fazer, o mar tem o poder, do lado de fora da montanha porque o caminho é água que magoa a terra ainda estremunhada pelo véu calmante da solidão da noite.
É por isso que os peixes são surdos nas marés vazias e não dizem palavra nas marés cheias.
Na serra tudo é viagem. Sabendo, fingimos sempre ignorar onde fica o lugar. Onde?
Quanto nos gosta a serra, quando nos custa. Da música não lhe descodificamos a mensagem e apenas sentimos que não somos capazes de acompanhar o advérbio (apenasmente omaramar, amaromar) aqui e no outro lado da montanha.
Na terra, armamos o mar, alheios.
Imensos, aos ombros de uns e outros arrumam-se os calhaus. Imóvel, esta cordilheira das naus navega, em sobressalto, cada onda de mar cinzento. Pairamos aqui como gaivotas tentando adivinhar, entre os recortes, todas as rotas: o murmúrio, os regatos, o trinar, os balidos, o bater dos chocalhos, os aromas dos matos, os silêncios ouvidos, os improváveis atalhos (e prometidos trabalhos), o que não se adivinha porque nunca se sabe o que nos acompanha e o que fica ou caminha: o olhar que não cabe no que é a montanha.
Sopradas pelo ofegante acordar da serra, as nuvens espraiam-se nos intervalos, como mar. E deixam-se ficar até que o sol as chame ao coração da terra. Os rios para serem maiores precisam delas aromatizadas pela terra ainda estremunhada pelo véu que acalma a solidão da noite, sem labaredas.
Depois, insano, parece que o lápis a carvão por aqui passou. Podia ser belo, mas não o é. O carvão, a fogo, deixa aqui o pesadelo. Apenas.

31/08/2022
 

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