Edição nº 1789 - 19 de abril de 2023

Maria de Lurdes Gouveia Barata
ESCREVER ABRIL

Eis a Primavera, no Abril agasalhado com sol em azul num chamamento de ar livre, a desejar passeios para altura de montanhas e orlas de mar. Todavia, os olhos apanham imagens televisivas de tempestades, inundações, tornados por esse mundo fora. Os incrédulos, às vezes com má intenção nessa incredulidade, já conferem agora os desastres das alterações climáticas e a culpa dos humanos na agressão ao planeta que habitam. Abril deriva do Latim Aprilis, que significa abrir, numa referência à germinação de toda a Natureza. Há outras hipóteses, que não vêm agora ao caso. Abril concede o desabrochar entusiasmado da Natureza marcada pela Primavera, com eclosão de alegria, de cor, de renovo.
Todavia, este Abril de 2023 vem marcado por guerras, continuando a guerra da Ucrânia com a mancha negra das notícias de há mais de um ano para cá. Veementemente, deseja-se a justiça da vitória ucraniana.
Mas falemos do mês de Abril que nos traz a Primavera, um ar novo e uma esperança nova. Utilizemos um poema de António Salvado de Jardim do Paço, «Primavera»:

Das flor’s primeiras o perfume aspiro…
É primavera, dizem! Derradeira,
a chuva molha ainda o ar…

Mas tiro
de sobre mim a solidão: e inteira
renasce a luz.

Um pássaro atravessa
o céu do nosso espírito a cantar…
E eis a primeira rosa, a lídima promessa
que nos abriu os olhos e nos fez sonhar!

Todos sabemos como o tempo meteorológico influencia o nosso estado de espírito. Os poetas cantaram sempre a Primavera, tornando-a mesmo cúmplice da esperança. Seguindo a Natureza, a alma edifica-se em alegria e sonho, podendo também sentir melancolia em dias baços de chuva. Como diz o poeta renasce a luz e a primeira rosa traz promessas e sonhos. Reitera em «Se dizes:”Canta”» (O Extenso Continente):
Repetes: “canta canta o canto novo
que a primavera traz a prometer!”

Escrever Abril chama também a poesia, a «voz absoluta escutada» (António Salvado, «Poesia», Difícil Passagem). Genericamente, «(…) a poesia é a nossa mais íntima implicação, na realidade ela é por si mesma compromisso e participação. O poeta não vem apenas contar e cantar o mundo. Vem também modificá-lo. Mallarmé dizia que o fim da poesia era «dar um sentido mais puro às palavras da tribo». Mas eu creio que a poesia vem também dar um sentido mais justo aos actos da tribo. (Sophia de Mello Breyner Andresen, in ‘Entrevista a O Tempo e o Modo, 6 de Junho de 1963). Faço um excerto dum poema de Sophia (Geografia (1967), «No Poema»), não sendo acaso aludir a Abril:
POEMA
A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita


(…)
A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
(…)

Escrever Abril referencia imediatamente o 25 de Abril, que viverá sempre no coração dos portugueses, apesar do «Abril de Sim Abril de Não» do título do soneto tão conhecido de Manuel Alegre, de que registo o último terceto:
Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.

A verdade é que o 25 de Abril de 1974 veio para ficar, não só no coração, também na razão, porque se torna a consciência do bem da liberdade. Revolução dos Cravos, Dia da Liberdade, eis o encantamento de ouvir estas expressões. Cravos vermelhos, símbolo de amor e paixão. A história do cravo associada ao 25 de Abril de 1974 traz várias histórias: eram flores da época, abundavam, eram mais baratas. Também se dizia que as floristas do Rossio começaram a distribuir a flor abundante, os cravos, como forma de celebração. Mas uma história me deliciou sempre e foi divulgada: é a de Celeste Caeiro, a empregada de um restaurante lisboeta próximo do Marquês de Pombal, que levava para casa um exuberante molho de cravos vermelhos. Entretanto, os militares pediam aos populares comida ou cigarros. Mas Celeste Caeiro não tinha e ofereceu-lhes os cravos. Os militares começaram a colocá-los no cano das espingardas.
Era o Dia Feliz da Liberdade! Como diz Sophia no poema «25 de Abril» (O Nome das Coisas):
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Uma imagem correu mundo, também tornada símbolo: a do Diogo, menino de três anos, de caracóis loiros, em bicos de pés, todo esticado, a colocar um cravo vermelho no cano de uma espingarda G3, que foi registada por Sérgio Guimarães, falecido em 1986. Era fotógrafo de talento, ligado ao teatro e artes plásticas e assim ficou ligado ao 25 de Abril.
Em 2006, o Presidente da República, Cavaco Silva, encontrou-se em Serralves, no Porto, com Diogo Bandeira Freire, a criança do famoso cartaz do 25 de Abril que colocava um cravo no cano de uma espingarda. Vivia, na altura com 35 anos, em Londres e diz a notícia: «em declarações aos jornalistas, manifestou-se surpreendido, mas “honrado” com o convite da Presidência da República para estar presente nas comemorações do 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas».
Em Abril, a Natureza ri – diz um ditado. Em Portugal, no ano de 1974, no dia 25, não foi só a Natureza que se mostrou sorridente, foram os portugueses pela conquista da liberdade. Que a paixão dos cravos vermelhos nunca esmoreça!

19/04/2023
 

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