Edição nº 1822 - 13 de dezembro de 2023

José Dias Pires
A VONTADE CONSPIRATIVA

O velho chegou-se à frente e, virado para o auditório, disse:
«Trago comigo a vontade conspirativa. Apesar de estar como os sapatos velhos e de começar a já não caber nas minhas roupagens; de os meus ossos insistirem em vencer a pele; das palavras, de tão gastas, me atrapalharem a língua, e dos pensamentos teimarem em não ficar confinados e saírem por já não caberem na nascente, estou como a música que não cabe no pentagrama e os meninos que nunca o foram: não me caibo no tanto que desejo.
Mas quero sorrir. Não me satisfaço em engolir-me bem mais devagar que a vontade. Quero o dilúvio do voo livre para poder deixar em testamento o que não quero perder.
Aqui fica a lista: Não quero perder as memórias do mar azul, a água infinita, o norte e o sul de todos os olhos capazes de olhar fechados, o sentir do toque das margens da cortiça que são o conforto das árvores, o sossego de dormir com as notas indefinidas do arrulho das pombas, o cantar dos galos, o gritar dos faisões, o apetite de ouvir o que me canta o bandolim do beija-flor e o que me dança o acordeão das cigarras: as semibreves sempre a sorrir para dentro de mim, a vontade de sonhar o que as janelas escancaradas me oferecem: as cantatas das paisagens, os entrechos musicais do pôr do sol, as tintas coloridas das palavras gritadas pelas crianças e o ressuscitar das formas simplesmente belas dos desamores juvenis, o voo sibilado das andorinhas e as paisagens sonoras dos gestos banais que, apesar disso, têm aroma de vida.
Não me quero perder nos lugares sem nome, nas cidades cinzentas, na volúpia das pressas caladas e nos empurrões dos relógios que nos obrigam a saltar de ponteiro em ponteiro.
Este é o testamento de alguém que ama a arte que pinta as palavras e que escreve as pinturas através das emoções e dos sentimentos: a música.
Foi a música que me ensinou a não presumir ser artista, mas sim um artífice que descobre a arte que não é a imitação das coisas físicas, nem o transbordar simplista dos sentimentos mais poderosos, antes a intuitiva, pensada, imaginada e sensual interpretação do que é real, sem definições pomposas.
Através dos meus discos de vinil é isto o que nos deixo.
Que a música nos incentive à vontade conspirativa.
À noite todos somos pardos e eu trago comigo a vontade conspirativa.
Fui convidado pelos servidores dos olhos melosos que me ofereceram os braços, como se um abraço fosse sinal de porta aberta ao que queriam que ouvisse, quando, afinal, os seus sorrisos agridoces escondiam, entre dentes, a vontade dos seus amos: que fosse, eu também, um dos arautos do tempo dos medos, das dúvidas e das esperas.
Ainda bem que já tinha aprendido e interiorizado que, em primeiro lugar, quero ser humano, na certeza que não serei eterno, nem maior.
Ofereceram-me avenidas, só que eu prefiro as veredas onde sei que posso tropeçar, cair, tingir de sangue as pedras da calçada, ficar dorido e magoado, mas sem vergonha porque é o caminho por mim escolhido.
Hoje tenho a alegria de pertencer ao grupo dos que foram concebidos para descobrir a novidade na água que redime as florestas, e deixar marcas, fundas, da terra molhada que não canta loas à saudade, nem baila à luz das sombras nas festas que são o ilusório corredor que, impávido, desagua nas tormentas.
O nosso coletivo ama o não possível que, se não for mais, é um amor que trepa as fragas e desmaia nas cálidas areias antes do mar.
Prometo dar a conhecer as miragens que, entre acepipes, se escondem nos cortinados dos salões, no centro dos conclaves e nas ilusórias avenidas que não findam.
Prometo não esquecer e abençoar a razão perdida que nos aflora a voz e da boca se escapa para nos levar, em passo resoluto, a denunciar a fronteira escondida nas ofertas chegadas à socapa para que não amemos o impossível. O impossível é a eternidade infantil agrilhoada pela ditadura do tempo na Cidade. Hoje, mais do que nunca, é indispensável ir e alimentar a conspiração que, laboriosamente, há tantos anos se prepara.
Que a vida nos alimente a vontade conspirativa.»

13/12/2023
 

Em Agenda

 
07/03 a 31/05
Memórias e Vivências do SentirMuseu Municipal de Penamacor
12/04 a 24/05
Florestas entre TraçosGaleria Castra Leuca Arte Contemporânea, Castelo Branco
14/04 a 31/05
Profissões de todos os temposJunta de Freguesia de Oleiros Amieira

Gala Troféu Gazeta Atletismo 2023

Castelo Branco nos Açores

Video