Guilherme D'Oliveira Martins
ANO NOVO, VIDA NOVA, CIDADANIA ATIVA
Desejo um Bom Ano 2024 a todos os leitores da “Gazeta do Interior”. O mundo apresenta-se perigoso, incerto e imprevisível. Precisamos de sinais de esperança. No prefácio que assinou no volume “Ilustrissimi – Cartas do Patriarca”, da autoria do Papa João Paulo I, Albino Luciani, o Cardeal D. José Tolentino Mendonça pergunta: “Qual é a tarefa do cristianismo após a fratura da modernidade? Luciani sublinha-o na carta a Gilbert K. Chesterton: é urgente ajoelhar-se não diante daquele Deus que «pela secularização é chamado de “morto”», mas «diante de um Deus mais atual que nunca». Isto, porém, exige a sabedoria de compreender como o «ponto de vista» se tornou culturalmente complexificado. É por isso uma responsabilidade gravíssima reativar processos culturais que desaguem na criação de códigos e chaves de leitura hermenêuticamente consistentes e vitais. Por isso, precisamos da literatura, não como um ornamento agradável, que, tudo somado, seja supérfluo, mas antes como estrutura portadora do nosso estar no mundo e da irrenunciável responsabilidade que o cristianismo transporta, como sustentava Luciani, de «fazer refletir!». E o certo é que este “fazer refletir” leva-nos à essência do fenómeno religioso, numa das suas raízes etimológicas – “relegere”, reler, repensar, ao lado do “religare que nos conduz à exigência do contrapor a coesão à fragmentação. E quando esta ligação e este repensamento estão na ordem do dia não podemos esquecer a participação ativa do Papa Francisco não só no desenvolvimento do processo sinodal, chamando todos a uma reflexão séria e persistente como participantes numa comunidade que se emancipa através da partilha de pensamento e ação, tirando consequências dos erros praticados ou das simplificações, mas também num caminho que se deseja de abertura, de diálogo, de capacidade crítica e de compaixão. É verdade que alguns gostariam de uma acomodação do Papa à inércia e ao “dolce far niente”. No entanto, precisamos de favorecer o movimento e uma perspetiva de disponibilidade, de compromisso e de saída.
Compreende-se o gradualismo (que é necessário), mas é o inconformismo que tem de se constituir como marca e método. A sociedade humana evolui e o universalismo da dignidade das pessoas obriga à releitura da encíclica “Pacem in Terris” de João XXIII, numa conjuntura como aquela em que vivemos em que cultura da paz é subalternizada, e em que os direitos e deveres fundamentais são esquecidos. Quando o Papa apela a “todos”, fá-lo, para além de qualquer formalismo, apontando para um humanismo pleno de pessoas livres e iguais em dignidade e direitos, que tendo como consequência a ecologia integral, afirmada em «Laudato Si’» e na exortação apostólica Laudate Deum, sobre o cuidado relativamente ao planeta, exprime profunda preocupação pela nossa casa comum, porque “não estamos a reagir de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe, está-se esboroando e talvez aproximando-se dum ponto de rutura”.
D. José Tolentino Mendonça, vencedor recente e justíssimo do Prémio Pessoa, no prefácio referido, lembra ainda que, no mesmo ano em que foi publicado “Illustrissimi. Cartas do Patriarca”, de Albino Luciani (1976), foram dadas à estampa as “Cartas luteranas”, de Pier Paolo Pasolini. Os dois livros são verdadeiros sismógrafos, já que Luciani alerta profeticamente para a necessidade de atenção às pessoas, enquanto Pasolini adverte para a «reviravolta antropológica promovida pela sociedade dos consumos e consumada pela desapiedada terraplanagem concretizada pelos seus processos sociais e culturais de homologação». A obra de Pasolini é um livro-denúncia, realçando a originalidade do livro de Luciani, que faz uma leitura crítica da realidade, enquadrando-a num horizonte necessariamente dilatado, «surpreendentemente convocado à redenção, pois Deus não desiste de procurar o Ser Humano». Italo Calvino escreveu que «um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer». Como poderemos responder aos desafios que estão lançados pela crise económica e financeira, pelas guerras que se eternizam, pela permanência de uma estranha cegueira relativamente à indiferença, à escalada da violência e à destruição da natureza e do meio ambiente? Somos chamados à cultura, à ação e às bem-aventuranças.