Edição nº 1826 - 10 de janeiro de 2024

José Dias Pires
LAMPARINA DA IGNORÂNCIA

A minha relação com a literatura começou muito cedo. Não tinha o cheiro do papel e da tinta, mas tinha o perfume das palavras dos mais velhos. Cresci com a literatura dos afetos: as minuciosas e detalhadas histórias de aventuras que os mais velhos da família nos traziam ao fim do dia.
Era uma literatura oral na qual se bebiam as saborosas palavras cheias de sombras romanceadas e de metáforas luminosas que nos acicatavam a ignorância e nos impeliam para a impaciente leitura de sabedorias escritas nas memórias de outros.
Por isso, agora que pertenço ao grupo dos mais velhos, vos quero contar a história da Lamparina da Ignorância:
Eram, dessa vez, os Feiticeiros da Escrita que moravam numa gruta do Monte dos Saberes situado no centro da Terra das Palavras Livres - o país dos escritores. Na Terra das Palavras Livres viviam duas tribos: os Cabeças Grandes e os Cabecinhas.
Os Cabeças Grandes, como o nome indica, tinham umas enormes cabeças. Eram tão grandes as suas cabeças que, para se protegerem do sol e do frio, as cobriam com chapéus-de-sol, no verão e chapéus-de-chuva, no inverno. Era assim que preservavam os seus cérebros do tamanho de uma ervilha, gigante, claro.
Entretinham-se, de forma muito criativa, a agrupar carateres, a elaborar palavras e a desenrolar as frases de textos muito bem construídos.
Mas os Cabecinhas, como não é de estranhar, tinham umas cabeças pequenas que suportavam com dificuldade uns cérebros que as preenchiam completamente mas incapazes de ser imaginativos. Eram gente esforçada e estudiosa, contudo, os seus textos eram medíocres, cinzentos e frios.
Na verdade não sabiam escrever.
Contava-se que os Cabeças Grandes tinham também um enorme coração onde cabiam todas as grandes emoções e se agitavam os melhores sentimentos.
Eram, o que se costuma dizer, boa gente.
Por isso tinham sido premiados pelos Feiticeiros da Escrita com a Lamparina da Ignorância que mantinham acesa debaixo dos seus enormes chapéus para iluminar os seus pequenos conhecimentos a qualquer hora do dia ou da noite.
Os Cabecinhas tinham o coração do tamanho da sua cabeça e nele só cabiam emoções passageiras e sentimentos mesquinhos. Usavam-no para promover à luz do dia os seus enciclopédicos saberes que agradavam sobremaneira aos Magos das Escritas Formais, que são a escritas dos textos sem nenhuma beleza.
Numa aparente paz, viviam divididos entre saberes enciclopédicos e conhecimentos pequenos.
Um dia, o Nada - um Cabecinha minúsculo - invejoso dos bonitos textos produzidos pelos Cabeças Grandes, começou a tentar pensar como eles. Mas não conseguia.
Faltava-lhe a Lamparina da Ignorância.
Apesar disso, conseguiu ter uma ideia: subir ao Monte dos Saberes, entrar na gruta onde viviam os Feiticeiros da Escrita e roubar a chama das Lamparinas da Ignorância.
Escondeu-se debaixo da cama do Guardião da Lamparina e aguardou que este adormecesse.
Depois, sorrateiro, rastejou vagarosamente até à mesa de pedra onde, numa lamparina de mármore, a chama se mantinha acesa e pronta para chegar a quem a merecesse. Aquela luz acendeu os seus pensamentos: ocorriam-lhe palavras bonitas, frases calorosas, emotivas, sinceras — metáforas — e teve
medo de a partilhar com os restantes Cabecinhas.
O Nada, julgando ter ficado na posse dos pequenos conhecimentos que lhe faltava acrescentar aos seus largos saberes enciclopédicos, lançou a chama no fundão do primeiro rio que encontrou. De imediato, sentiu-se incapaz de pensar mais do que coisas banais. Chegou-se a um dos Cabeças Grandes e perguntou:
“Que fazes, quando se te apaga a chama da lamparina?”
“Pego num dos meus poemas e levo-o ao Guardião para que ele, em troca, me volte a acender a chama dos pequenos conhecimentos.”
“E se ele não tiver como acendê-la?”
“Farei melhor o que sempre procurei fazer bem.”
“E isso o que é?”
“Leio. Leio mais e, se possível, em voz alta.”
“Ler? E em voz alta? Para quê?”
“Para me ouvir enquanto leio e manter acesa a chama da ignorância.”
Só muito mais tarde percebi tudo o que quem me contou esta história me queria ensinar, e foi nesse dia que aprendi a ouvir antes de ler para poder ser um Cabeça Grande. Não sei se ainda vou a tempo.

10/01/2024
 

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