Lopes Marcelo
FIDALGUIA RURAL
Ainda no eco do tempo de Natal, tempo especial de partilha solidária, assumo partilhar com os leitores algo verdadeiro meu, as mihas palavras habitadas de memórias e de sentimentos. Em geito de testemunho, partilho um pouco da água da minha sede cultural. Assumido filho da terra, da minha aldeia despovoada já com menos de duas centenas de pessoas residentes, mas muito rica de valores, sabores, memórias, saberes-fazer e tradições etnográficas. Comunidade de origem, raízes e fonte primeira, referência afectuosa essencial para muitos milares de filhos espalhados pela Europa e por tantas cidades do nosso país. Considero a maior parte dos meus conterrâneos mais idosos como sendo fidalgos. Sim, filhos de algo, de uma herança cultural comun de base rural que é legitimamente de todos por não se impor nem se organizar em privilégios, castas ou classes, que é genuína porque não tem hierarquias, é aberta, sente-se e vive-se livremente em comunidade. É a nossa terna afiliação na memória do passado cumum que ainda borbulha na íntima vibração do que nos diferencia: os nossos produtos culturais, o Rancho Folclórico, o Madeiro, as Janeiras com os enchidos, o linho e os teares, os altares da Via - Sacra da Semana Santa nos balcões de pedra, o nosso cancioneiro local, o bodo...
Partilho hoje, através da minha escrita poética, a síngela homenagem ao homem rural, ingénuo fidalgo na sua sábia vocação de semeador, no que designei por Hino Telúrico.
Hino Telúrico
Ergue-te semeador
da indecisa moldura
da fria noite insegura.
A tua fé de sonhador
renasce com a madrugada.
Lança o grão com amor
em sublime gesto redentor.
No concerto da gratuita
e surpreendente beleza,
participas no renascer da vida
em diálogo com a natureza.
À terra pertences
em renovados alqueives.
Gestos do presente duro
sementes de futuro
na geada da incerteza,
a fertilizar os amargos torrões
dos intensos verões.
As singelas aves
Tens por companheiras.
Amigo das chuvas
sabedor de luas
irmão do sol
de tantas canseiras
em longo rol.
Rente ao chão
Floresce a tua ternura.
Fortaleces o coração
na faina dura
e a mágica luz do trigo
dança enamorada contigo.
Dedicado sonhador
lança as sementes.
São de terra, são de amor
os teus fecundos gestos,
ancestrais saberes
raízes e memórias do passado
saboroso pão partilhado.
A tua casa de porta aberta
tem sempre a mesa posta
com a toalha dos afectos.
Farta de pão e vinho
em saborosa fidalguia rural
rendilhada de puros gestos,
é sempre telúrico Natal.
Vestes a esperança
moldando a paisagem.
Artesão da natureza
respiras a doce aragem
na brisa da partilha,
o vento acaricia o teu ser
no lento entardecer.
Com carinho tudo designas
e sereno amas
o chão, as pedras, as ervas
os novos seres a despertar
e o perfumado silêncio
das flores a desabrochar.
Um dia, quando mais cansado,
de novo abraçarás
a mais vetusta árvore
perto da primeira fonte.
Na sede da sua sombra
à ternura da infância voltarás
e, resistente, recomeçarás.
Dezembro, Natal de 2023