Maria de Lurdes Gouveia Barata
25 DE ABRIL, IMPERIOSAMENTE
Meio século é espaço temporal de peso no sabor da democracia que a madrugada do 25 de Abril de 1974 trouxe para o país à beira mar plantado que se chama Portugal. Acrescente-se a esse sabor o inebriamento experimentado depois de outro meio século: o da ditadura. Abril terá sempre a força de um estar fascinante relativamente a um antes, que muitos não experimentaram como vivência pessoal, uma vez que já nasceram no seio da democracia. Sophia de Mello Breyner Andresen transmitiu o que foi o encantamento dessa madrugada:
25 DE ABRIL
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Eu pertenço à geração da vivência que foi testemunho, o sentimento guardado na memória ainda surge intenso e compreensivo do que era dizer «emergimos da noite e do silêncio», com toda a força de símbolo ligado a noite, escuridão (quanto negrume no tempo da ditadura!) e ligado a silêncio enquanto proibição e repressão em nos exprimirmos, sendo todos potencialmente perigosos nas palavras contra o poder instituído – basta lembrar a censura, a palavra tem força, pode abalar alicerces, falar ou escrever levava açaime. Expressa-o Miguel Torga no poema «Panorama» (Diário X, S. Martinho de Anta, 28 de Setembro de 1966):
Pátria vista da fraga onde nasci.
Que infinito silêncio circular!
De cada ponto cardeal assoma
A mesma expressão muda.
É de agora ou de sempre esta paisagem
Sem palavras,
Sem gritos,
Sem o eco sequer duma praga incontida?
Ah! Portugal calado!
Ah! povo amordaçado
Por não sei que mordaça consentida!
Dessa noite da opressão emergia também a guerra colonial, que afligia os jovens portugueses e lembro-me de ouvir falar (a minha memória não reteve nomes) dum garoto de cinco ou seis anos, que, no meio de conversas excitadas dos primeiros dias do Abril da revolução, perguntou ao pai (foi informação televisiva): «Então, pai, agora já não vou para a guerra?»
Dessa noite emergia também a emigração para a qual era empurrado o povo português por uma questão de sobrevivência. Famoso é o poema de Manuel Alegre «Portugal em Paris» (a França era um dos principais países de emigração), em que ficaram preservados momentos de dificuldade. Eis breves excertos: «Vi minha pátria derramada / na gare de Austerlitz. Eram cestos / e cestos pelo chão. Pedaços / do meu país.» E os três últimos versos do poema: «Éramos cem duzentos mil? / E caminhávamos. Braços e mãos para alugar / meu Portugal nas ruas de Paris».
Pois aquela madrugada de 25 de Abril de 1974, retomando o poema se Sophia que transcrevi, só podia ser o dia inicial inteiro e limpo que carreava a liberdade e a esperança. Uma esperança e um desejo de liberdade que vinha de há muito tempo, que muitos registavam ou diziam em cicio. Jorge de Sena escreveu um poema (1956) de que retiro dois versos: «não hei-de morrer sem saber / qual a cor da liberdade». Na verdade, teve essa alegria e escreveu depois um novo poema em que diz como refrão: «Qual a cor da liberdade? / É verde, verde e vermelha.» Transcrevo a última estância do poema («Cantiga de Abril»), a que se segue este refrão: «Saem tanques para a rua, / sai o povo logo atrás: / estala enfim altiva e nua, / com força que não recua, / a verdade mais veraz». Abril tornou-se, assim, uma Primavera duplicada. Abril incrustou-se em Portugal como nome de fascínio do encantatório da liberdade, a grande ânsia da esperança. Só o facto de mudar para ser livre já valeu a pena.
Cumpriu-se Abril? Não totalmente. Há sempre perigo à espreita. Até existem aqueles (nem quero acreditar) que parecem saudosistas do tal meio século (ou quase – foram quarenta e oito anos) antes de 25 de Abril de 1974. Os tempos falharam em promessas, os tempos correm de ameaça. Volto a Manuel Alegre no conhecido poema «Abril de Sim Abril de Não» e deixo apenas a última estância:
Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.
Mas haverá sempre em cada esquina um guardião atento, tornando-se muitos, que não deixarão morrer o 25 de Abril. Lembro um poema de Ana Ducla Soares, para as crianças, o que é importante, com uma mensagem para todos, de que retiro a última quadra:
Não pode morrer Abril,
Que nós não vamos deixar.
Hão-de florir sempre cravos,
Basta alguém os semear.
O 25 de Abril deixou sementes vivas. Imperiosamente.