Maria de Lurdes Gouveia Barata
AS CASAS/A CASA
As casas são o primeiro apelo para o olhar quando se chega a uma povoação, seja aldeia, seja cidade, avaliando-se a cor, a arquitectura, a grandeza, as janelas e sei lá que mais. No que diz respeito a arquitectura citadina logo critico a altura às vezes exagerada de zonas que detectamos como «dormitórios» apenas, que me dão a sensação de encaixamento desagradável, às vezes semelhantes a cortiços de gentes a monte (embora alguns grandes prédios possam por vezes ser luxuosos por dentro…).
Falar de casas é falar de habitação. Pensar em casas faz-nos reflectir sobre os que a não têm, e entra-nos pela alma o problema dos sem abrigo, dos sem tecto, com notícias do aumento do seu número sobretudo nas grandes cidades. Essas notícias, acompanhadas de imagens televisivas, confrontam-nos com os que dormem enrolados no chão, protegidos com um cobertor ou papelões, o que faz estremecer a sensibilidade de qualquer um que não seja indiferente ao próximo. É verdade que existem aqueles que olham para o lado, com repulsa perante barracas esburacadas, querendo inventar um tecto, montadas em jardins ou recantos de ruas mais largas – olhar para o lado, com repulsa, com reprovação são modos de satisfazer egoísmos instalados, porque é melhor não ver – o que não se vê não se sente. Muito se ouve sobre «mais habitação», mas o problema é lento a resolver-se, parece um deixar correr, porque os que têm o poder de resolver e concretizar não sentem na pele o verdadeiro drama que isso representa. Não poderia haver uma acção transitória enquanto se constroem lentamente as casas de pedra segura? Não seria oportuno um espaço habitacional com casas pré-fabricadas (não é estratégia mais rápida e barata?) concedido pelas autarquias, em que o problema é mais agudo, que evitasse os vãos de escada, o debaixo de ponte? Ponho a hipótese da minha ignorância sobre a proposta, considero ainda que estamos num tempo de falta dos homens de boa vontade. Acresce que há imóveis do estado completamente abandonados e a deteriorar-se sem que se lhes dê alguma utilidade.
A CASA é abrigo e refúgio. Na grande habitação que é o planeta Terra há a considerar a outra habitação mais particular, mais íntima, mais próxima e materna, em que se entretecem laços com essa CASA, onde se edificam vínculos humanos de proximidade. A CASA é símbolo feminino como seio maternal e recolhimento do mundo exterior, torna-se um ser familiar na sua materialidade. Viver cada dia a casa, a sua CASA, torna-se urdidura de marcas pessoais ao longo dos dias, ora no recanto que se engendra para a beleza, ora no objecto que se escolheu pelo coração, estruturando progressivamente uma identidade. A CASA torna-se testemunho e companheira de vida. Aliás, a CASA também fala de quem a habita.
Daí que a CASA NATAL assuma uma dilecta importância de peso, sendo matriz de descoberta e aprendizagem do mundo, impregnando-se de um halo mágico de caverna de Ali Babá. Para lá do espaço que é a Casa Natal, há o tempo longínquo que a envolve, escamoteando-se sentimentos de tristeza ou contrariedade, tornando-se o lugar do sonho e da iniciação, transmudada na casa onírica de que nos dá conta Gaston Bachelard, passa a ser segredo e símbolo do ser interior. E a casa torna-se réplica dum centro cósmico.
O afecto presente na CASA exprime-se em palavras poéticas de amor. «Amor como em Casa» é poema de Manuel António Pina, de que indico breves excertos: «Regresso devagar ao teu / sorriso como quem volta a casa. (…) regresso devagar a tua casa, / compro um livro, entro no / amor como em casa». A CASA NATAL tem a plenitude do amor e os grandes poetas referenciam-na desse modo. Assim acontece em António Salvado «Casa do Amor» (Certificado de Presença) e transcrevo os dois versos finais: «Deito longe a saudade: permanece / a casa do amor, em mim, perene.».
Essa permanência é mencionada por Francisco Bugalho em quatro versos de «Casa Abandonada»: «Arde / Ainda, nos meus olhos, / A luz do sol que brilhava / Na janela».
A CASA e quem a habita fazem nascer uma relação de cumplicidade, como se a Casa se transformasse num ser vivo. Há uma alusão a destacar no poema «Oh as casas as casas as casas» de Ruy Belo e eis um excerto: «Oh as casas as casas as casas / mudas testemunhas da vida / elas morrem não só ao ser demolidas / elas morrem com a morte das pessoas (…)». Ainda de Ruy Belo (poema referido): Só as casas explicam que exista / uma palavra como intimidade». A intimidade e a privacidade anicham-se num espaço que vai ganhando forma estável no tempo e vai criando memórias O papel fundamental que a CASA desempenha projecta-se num bem físico, emocional e social, o que proporciona a tranquilidade. Cria um contexto para convívio familiar e social.
Quando Pablo Neruda escreve «Ode ao Edifício» (Odes Elementares) destaca o papel do homem construindo em altura para habitar (por mim, confesso que não gostaria de ter a minha casa em altura de grandes edifícios). Dos dois últimos versos da primeira estância, «a edificada altura / construída para o homem», retenho «construída para o homem» - para habitar.
Como podemos esquecer as pessoas sem casas para habitar, sem a sua CASA?!