Edição nº 1851 - 3 de julho de 2024

Guilherme D'Oliveira Martins
CAMÕES, NOSSO CONTEMPORÂNEO

Lembrar Camões é mais do que louvá-lo. É abrir horizontes para a sua obra, no momento em que, no século XVI, foi com ele, que se atingiu a maturidade da língua portuguesa na poesia. E não é indiferente dizê-lo, uma vez que falamos de um idioma nascido na poesia dos trovadores e que teve no rei D. Dinis o impulsionador que permitiu tornar a língua vulgar língua de cultura e meio de expressão formal para legistas e tabeliães. Essa decisão permitiu que em três séculos tenhamos podido ter com Camões a afirmação das origens do português moderno e no século seguinte a maturidade da prosa com o Padre António Vieira.
Jorge de Sena disse, no célebre discurso sobre o Dia de Portugal de 1977, que importava «dar a Portugal um Camões autêntico e inteiramente diferente do que tinham feito dele: um Camões profundo, um Camões dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo um homem do nosso tempo, que poderia juntar-se ao espírito da Revolução de Abril de 1974, e ao mesmo tempo sofrer em si mesmo as angústias e as dúvidas do homem moderno que não obedece a nada nem a ninguém senão à sua própria consciência». Jorge de Sena deixava, assim, claro que, «sendo Camões o maior escritor da nossa língua que é uma das seis grandes línguas do mundo e um dos maiores poetas que esse mundo alguma vez produziu (ainda que esse mundo, na sua maioria, mesmo no Ocidente, o não saiba), ele é uma pedra de toque para portugueses, e porque tentar vê-lo como ele foi e não como as pessoas quiserem ou querem que ele seja, é um escândalo».
Para Jorge de Sena, Camões é «o homem universal por excelência, o português estrangeirado e esquecido na distância, o emigrante e o exilado, é em Os Lusíadas e na sua obra inteira, tão imensa e tão grande, a medida do mais universal dos portugueses e do mais português dos homens do universo». Fora de qualquer tentação de autossatisfação ou de ilusão, «ninguém, como Camões, desejou representar em si mesmo a humanidade, representar tão exatamente o próprio Portugal, no que Portugal possui de mais fulgurante, de mais nobre, de mais humano, de mais de tudo e todos, em todos os tempos e lugares». No essencial, «ele é, como ninguém, o homem que viajou, viu e aprendeu. O homem que se sente moralmente no direito de verberar com tremenda intensidade, as desgraças de viver-se e os erros ou vícios da sociedade portuguesa». Eis a legitimidade própria para considerar Camões como um verdadeiro símbolo, em que o sentido crítico sobreleva quaisquer argumentos de oportunidade. José Bento insistia, aliás, em que Sena não se ficava pelo meio – “procurava sempre a totalidade”. Porventura sem querer, ou querendo-o intimamente, Jorge de Sena deixou nesse dia a mensagem fundamental de um grande poeta e ensaísta moderno. Aliás, em “Sinais de Fogo”, obra-prima, apesar de incompleta, que começa no tempo da guerra de Espanha, sentimos “a tensão existencial entre conhecer e o agir, na vida social, amorosa, sexual, desencadeia a criação poética”, como disse João Fazenda Lourenço. E de facto raramente se terão harmonizado, numa mesma personalidade, o poeta, o dramaturgo, o ficcionista, o crítico, o ensaísta, o erudito, o investigador, o historiador da cultura, o professor, o engenheiro, o cidadão do mundo. E, como afirmou ao grande amigo Ruy Cinatti, aos 22 anos, “Viver é coisa de mar, cheira a horizonte. Que mais é preciso? Só é preciso o que existe – eu é que exijo tudo o que existe”. E o discurso da Guarda remata com o apelo para Camões: «Leiam-no e amem-no: na sua epopeia, nas suas líricas, no seu teatro tão importante, nas suas cartas tão descaradamente divertidas. E lendo-o e amando-o (poucos homens neste mundo tanto reclamaram amor em todos os níveis, e compreensão em todas as profundidades) – todos vós aprendereis a conhecer quem sois aqui e no largo mundo, agora e sempre, e com os olhos postos na claridade deslumbrante da liberdade e da justiça. Ignorar ou renegar Camões não é só renegar o Portugal a que pertencemos, tal como ele foi, gostemos ou não da história dele. É renegarmos a nossa mesma humanidade na mais alta e pura expressão que ela alguma vez assumiu. E esquecermos que Portugal como Camões, é a vida pelo mundo em pedaços repartida».

03/07/2024
 

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