Maria de Lurdes Gouveia Barata
DIVAGAÇÕES DE NATAL
Dia de Natal
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.
(…)
António Gedeão
O que parece uma primeira expressão de sensibilidade e comoção perante esta época natalícia em que tanto se fala de amizade, paz, amor, transforma-se numa asserção eivada do sarcasmo duma crítica severa ao que se passa no dia de ser bom, que é o Natal, com a ternura de mimar crianças e abraçar toda a gente. Porém, insisto no tom sarcástico (mesmo que se verifique alguma mescla de ironia) que os dois primeiros versos da segunda estrofe ratificam: pensar nos outros (os coitadinhos sofredores), apontando este pensamento para incentivo à coragem para a aceitação da miséria vivida, instituindo até uma censura truculenta aos que acham que haver os ricos e os pobres é um destino, já que aceitar a miséria é a negação da revolta e da luta por uma mudança. O status quo, se bem que injusto, é para manter e, no dia de ser bom, é preciso pedir coragem para se conformar. Que censura maior pode haver? O primeiro verso da terceira estrofe (que foi truncada) torna-se, esse sim, prenhe de ironia: comove tanta fraternidade universal. A fraternidade que nasceu com os homens que se irmanam e que no dia do nascimento do Menino é concretizada de forma singular num poema de Miguel Torga - «Natal»:
Devia ser neve humana
A que caía no mundo
Nessa noite de amargura
Que se foi fazendo doce...
Um frio que nos pedia
Calor irmão, nem que fosse
De bichos de estrebaria.
No poema «Escrevo Natal» de António Arnaut (Recolha Poética (1954-2017) a última estrofe coaduna-se com a ideia que estou seguindo: «É noite na minha alma neste dia universal / por tanta injustiça sem remorso à solta». No poema de Jorge de Sena «Natal de 1971» fica também a interrogação: «Natal de quê? De quem? / Daqueles que o não têm? (…) Ou de quem traz às costas / as cinzas de milhões?»
Seguindo o poema de António Gedeão, parcialmente transcrito no início, vou ainda destacar a sexta estrofe:
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
E acrescenta na 8ª estrofe (dois últimos versos: «E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento / e compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.» Lembro com um sorriso uma quadra do «Natal Chique» de Vitorino Nemésio: «Hoje é Natal. Comprei um anjo, / Dos que anunciam no jornal; / Mas houve um etéreo desarranjo / E o efeito em casa saiu mal.»
É praticamente lugar comum falar do consumismo do Natal, que se tornou exagerado e dominador em detrimento dos sentimentos mais apregoados da relação humana. Por causa das correrias e das pressas e do trânsito congestionado esses sentimentos quantas vezes se transformam em raivas e agressões até, contrárias à época.
Voltemos a Jorge de Sena («Natal de 1971»): apesar de um tempo diferente da sua escrita, a pertinência duma actualidade conduz ao destaque de algumas das interrogações que o integram:
(…)
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
(…)
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
(…)
No contexto actual, as guerras que povoam os ecrãs televisivos entram quotidianamente nas nossas casas, arrepiantes de alarme, teimando nas palavras de líderes loucos, que até falam em guerra nuclear com a leviandade da indiferença do mal sobre a humanidade a que todos pertencemos. E esse grupo de loucos tem no Poder que manipulam o destino de milhões! Daí que no poema «Natal» António Salvado registe nos quatro últimos versos: «Ternura dum breve instante / que o próprio instante desterra, / morta no facto constante / de tanta de tanta guerra…».
Todavia, as luzes de Natal inundam o olhar com o fulgor da Estrela, que foi guia dos Reis Magos e na comoção de olhos marejados há também cintilações. A beleza das luzes de Natal, tornadas símbolo, não deixam que a esperança desfaleça – uma esperança que alimenta a teimosia do gosto pela vida. Deambulei na companhia de poetas e termino com António Arnaut:
POEMA BREVE
Era uma noite igual
às outras que o Tempo vai deixando
perdidas no mar do esquecimento.
Mas a alegria do meu neto
disse-me que sim, era Natal!