Antonieta Garcia
REFUGIADOS - UM OLHAR
Será que entendemos realmente a barbárie que cerca os refugiados? Vencida a viagem são recebidos como um fardo; alguns governos expulsam-nos, protegem-se com arame farpado, nova muralha em defesa sabe-se lá de quê… Escolhem caminhos velhos, são armazenados em espaços exíguos... Tanta gente infeliz, tanta fome! Querem ser os primeiros a entrar nos comboios, para poderem respirar junto a uma janela, um comportamento que lembra o Holocausto. Saíram cheios de fé... Para onde vão?
Crianças, mulheres e muitos jovens iniciaram, há muito, uma errância, com destino desconhecido. Cada pessoa traz colada à pele, uma existência doída, assustada. Une os refugiados um território interior e um mesmo fio de alma: poder viver sem o sangue, o medo, a injustiça e a incerteza da guerra. Há uma garra que aperta o peito, que estrangula.
Os anfitriões amedrontam-se. O desconhecido teme-se. Que fazer? Continuar a debater assuntos políticos, filosóficos, religiosos... e vão adiando decisões.
Detentores de várias culturas guardam nomes estranhos; a língua não facilita a comunicação. Babel anda ali, inteirinha, em castigo de divisão, em culpa de desentendimentos. Vozes misturam-se. Todavia, países europeus, multiculturais alojaram diásporas, ao longo da sua história; às vezes, criaram espaços de tolerância, de convívio enriquecedor e de diálogo. O que mudou? Um grupo de loucos recuperou a ideia de matar, em nome de Deus. Como foi possível? Conhecido o percurso da Humanidade, sobrarem gentes que elegem líderes defensores de purezas, tais e tantas, que manda o pudor que se calem? O ódio ainda reside/resiste na história do mundo.
O fundamentalismo e uma defesa intolerante da ortodoxia são devastadores; apontar como bode expiatório, como origem de decadência moral, outras culturas, outras fés, inquieta, de novo, o nosso tempo.
O caleidoscópio cultural e religioso é uma proposta vital para o ser humano, para a criação de uma polis multicultural, respeitadora do individual e do universal.
Na memória dos refugiados, nos peregrinos de terras a haver, nunca se apaga o calendário de tristezas, a dor da perseguição por alguns serem fiéis a outras fés. Entre os algozes, o sentimento de culpabilidade há muito que se extinguiu.
Contam com cumplicidades perturbadoras. Com os que lavam as mãos.
- Fizemos o que pudemos! Quem sabe se entre os refugiados não vêm terroristas que matam a torto e a direito? Da última vez, em Paris, não há muito tempo… Quantos foram assassinados; Quantos se perderam e perdem no mar?
Falamos de gente cuja vida foi interrompida, não por uma qualquer fatalidade, mas porque outros homens negaram a sua condição humana. Senhores do Juízo final, atribuíram um espírito pecador, delinquente, criminoso a alguém… e mataram.
Tormento maior, imenso é o que habita na memória dos que sofreram a guerra e agora buscam refúgio, sobrevivência.
Como não tentar a amnésia? Dia após dia, naufragam, são resgatados do mar, caminham. As crianças choram, os olhos cheios de espanto... Que é do mundo onde brincavam com amigos reais? A fome conquistada com violência, os odores, os andrajos converteram-se no pão nosso de cada dia. Imagens banais? Notícias triviais?
A banalidade do mal - Hannah Arendt - anda à solta; entretanto, pensar acriticamente, silencia a consciência e estriba o terror. Os carrascos perante ordens que sentenciam como divinas… não distinguem o bem do mal e trucidam.
Em tempo de tirania, há um ponto de ignomínia, de vilania a partir do qual não há regresso. Homens radicalizados exercem o mal sobre outrem e corrompem, contaminam o que os rodeia.
Como observar sem raiva, as decapitações, como não estremecer perante monstros que elegem como ponto de honra exterminar tudo o que é diferente? Como pactuar com o despudor violento com que executam ordens, a coberto do que qualificam como “vontade de Deus”? A saga dos milhares de refugiados que atravessam o Mediterrâneo tem este sinistro pano de fundo: a ameaça de um massacre onde reinam a impotência, a ganância e a cobardia impedem que se rompa esta cadeia de sofrimento, se faculte o futuro a crianças, mulheres e homens ameaçados de morte…
As aflições humanas não se compadecem com o atraso de decisões estandardizadas, legislativas. Os déspotas radicais não podem aniquilar a civilização. A “cultura animi” pode iluminar janelas e vitrinas, atalhar a via-sacra antes que se traduza num Gólgota. Senão… ai dos sonhadores, dos criadores, dos heterodoxos, dos diferentes… Quando vence a proposta de anorexia mental e se arruína a dimensão do desejo de igualdade, de fraternidade, de liberdade… Ai de todos nós, ai da Europa!