Joaquim Bispo
A realidade
(Continuação)
Ainda a pensar no sonho que acabara de ter, Pedro senta-se. Sabem-lhe bem os sofás macios, confortáveis. A sala acolhedora fá-lo sentir o contraste com a vivência de há momentos.
- Nem queiras saber o pesadelo que tive... – hesitou na descrição. - Ia sendo atropelado.
- No sonho!
- Sei lá se foi só no sonho. Era tão real! Eu ia a atravessar uma rua e, de repente, aparece-me um carro a toda a velocidade.
- Eu, às vezes, também tenho sonhos horríveis.
- Mas as coisas estavam tão nítidas, tão coerentes, que eu chego a duvidar se era só sonho. Ainda me lembro da cara do tipo que conduzia. E das pessoas que assistiam. Sabes que a coerência interna das situações é o único indício que costumo tomar como certeza de que estou acordado.
Pela mente de Pedro, desfilam novamente as peripécias do sonho. Todos os pormenores permanecem vivos na sua memória: o rodado dos pneus, o aspeto da rua, o rosto da empregada da tabacaria, a revista…
- E a revista era a Pesquisa. O engraçado é que já não a compro há uns meses. Anunciava nesse número, em grandes letras, “Sono REM - o organizador da realidade”. Lembro-me bem.
- Não sei que organização é essa, porque, para mim, isso de sonhos está cheio de incoerências.
- Talvez não só incoerências! Repara que, na maior parte das vezes, o sonho reflete as peripécias do dia de quem sonha, ainda que sob uma capa surrealista. Posso sonhar que atravesso a vau um pântano onde outras pessoas chafurdam e não acho isso estranho. Quando acordo, se me lembrar do sonho e fizer um esforço de o relacionar com episódios do dia anterior, talvez me lembre de ter atravessado um relvado acabado de regar, a caminho do trabalho. O terreno empapado está lá; o resto talvez seja um sentimento inconsciente do que penso do local de trabalho e de quem por lá se arrasta.
- Hm, sim! Mas não seria mais lógico sonhares com o local de trabalho, mesmo, e não com o relvado?
- Talvez, mas é a maneira como o nosso cérebro funciona. Aliás, os sonhos incongruentes perturbam-me menos do que aqueles que não distingo da realidade… Como é que eles acontecem? Sou eu, que estou a dormir, que consigo imaginar histórias, que nunca vivi, cheias de pormenores como na vida real? Chegam a ser tão coerentes e semelhantes à realidade que eu já me tenho perguntado o que é afinal real: o que vemos aqui, ou o que vemos nos sonhos? Ou ambos? Deixa-me cá beliscar… Ah! Outra curiosidade. Antes deste sonho, tive outro com recordações de infância. Esse era uma grande baralhada e já não me lembro bem. Mas evocava sobretudo sentimentos e emoções.
- Eu chego a ter quatro e cinco sonhos só numa noite…
- Sim, mas sabes o que me aconteceu? É que passei de um sonho para outro, como se passasse de um sonho para a realidade. Acordei, pensava eu. Mas era outro sonho, percebes? E olha que estava mesmo convencido que estava acordado.
- Gostas de complicar...
Pedro fica calado a pensar. Depois adianta:
- Quem me diz a mim que isto tudo não é outro sonho igual ao do acidente?
Entreolham-se. Pedro belisca-se novamente. A mulher finge que se zanga:
- Então e eu sou o quê?
- Tens razão, querida. Tu és mesmo real. E ainda bem..
(Continua...)