Elsa Ligeiro
BIBLIOTECAS E BIBLIOTECÁRIOS
Vivemos tempos de incerteza, em que a civilização volta a ser posta em causa. Como diz o poeta: o mundo pula e avança…, mas a liberdade com que o faz não agrada a todos.
Num tempo em que a história é apenas o presente e não o tempo vivido pelos nossos avós que travaram guerras sanguinárias e foram contemporâneos do horror de campos de concentração nazi, onde a raça e a religião determinaram aniquilamentos (aí temos o genocídio em Gaza que para muitos não passa de uma tragédia para ver e sentir através de um ecrã, de forma ligeiramente mais dramática do que uma ficção televisiva).
Substituímos o ensino da História de Portugal e Universal por Jogos de Guerra; e os jovens são corrompidos por heróis com poderes mágicos; que triunfam uma e outra vez sobre o mal deixando o mundo organizado até à próxima investida do lado negro da força, num jogo sem matriz na realidade.
Narrativas do mundo alternativo em que o bem triunfa sobre o mal, especialmente se possuir armas sofisticadas; apaziguando assim a nossa vida que já é só de sobrevivência.
Numa Europa em que o estado social deveria proteger os mais frágeis, redistribuindo com peso e medida o valor dos nossos impostos; mas que, gradualmente, apenas consegue transformar cada cidadão num consumidor.
O equilíbrio já não se faz através do valor da cidadania, pelo trabalho e a contribuição social, mas pela capacidade de cada um consumir mais e melhor.
Um mundo global de consumidores onde todos os bens se pagam, até os espirituais.
Todos a viver a voracidade do capitalismo sem regras nem pudor; em que se elege um magnata como presidente de uma nação e este nomeia como assessor o empresário mais bem-sucedido no mundo dos negócios; sobrepondo a lógica do lucro à política e aos direitos humanos mais elementares.
Todos consumidores; da China à Europa, onde Portugal, com o seu povo hospitaleiro, servil e acolhedor, aposta todas as fichas no turismo de salvação, transformando qualquer proprietário de alojamento local num capitalista convertido.
Neste clima social e político, nitidamente à espera dos bárbaros, qual a utilidade das Bibliotecas?
Que romantismo é este de lutar com livros contra a barbárie?
O que pode a Poesia de Camões, Whitman, Baudelaire, Pessoa, Wislawa Szymborska, Jorge de Sena ou Sophia contra a barbárie que vemos em Gaza ou a guerra sem fim na Ucrânia?
Que podem as metáforas de Saramago, as memórias do Adriano de Yourcenar ensinar-nos estratégias contra os ventos pestilentos da ignorância?
Que lugar para o D. Quixote de Cervantes, A Morte de Vergílio de Broch ou as conjunturas filosóficas de Pascal Quignard?
Que papel o das Bibliotecas que ainda disponibilizam estas obras e o melhor que milhares de autoras e autores de todo o mundo se empenharam em deixar-nos como herança?
Quantos bibliotecários ainda mantêm na memória a história da literatura que é paralela à da nossa humanidade.
Quantos ainda resistem ao novo, ao mostrado na televisão, ao mais vendido?
Quantos cativam leitores vagamente distraídos e acolhem de braços abertos veteranos que ainda têm nos livros um forte apoio de pensamento e resistência?
Quantos continuam a oferecer com entusiasmo aos seus leitores as palavras de Voltaire, Herman Hesse, Camilo Castelo Branco, Luísa Costa Gomes, Branquinho da Fonseca, Paul Celan, Patrícia Portela, Paulo José Miranda, Raduan Nassar, Sophia, Herberto Helder, Adília Lopes, António Franco Alexandre, Rui Zink ou Adélia Prado?
Quantos sabem que uma novidade é apenas um livro que ainda não se leu e que a moda é para as modistas?
Não haverá já muitos a defender a qualidade literária e a fazer frente à invasão de autores que preferem escrever um livro medíocre; em vez de utilizar a sua energia e o seu propagado amor aos livros para ler as obras-primas que vão sobrevivendo à voragem do tempo.
É verdade que o nosso tempo não está para boas bibliotecas e esclarecidos bibliotecários.
Mas é na Biblioteca e com os seus bibliotecários que se pode e deve organizar parte importante da Resistência; contra os totalitarismos que pressentimos na respiração de muitos lobos disfarçados de cordeiros que nos rodeiam insidiosamente.
A Biblioteca como trincheira do saber inviolável e da cultura da qual somos legítimos herdeiros.
Uma causa justa pela qual vale a pena lutar.