Edição nº 1908 - 20 de agosto de 2025

Maria de Lurdes Gouveia Barata
AGOSTO EM FOGO

Reabro o livro, um romance de Vargas Llosa (Travessuras da Menina Má, que me ofereceu uma grande amiga, com o desplante de me dizer que tinha escolhido para mim por causa do título, não conhecendo ela o conteúdo!). Estou quase a chegar ao fim, foi a segunda leitura dumas pequenas férias. Encontro areias de praia entre duas páginas. Logo volta o mar, fiz-lhe um adeus até à próxima e volta a agarrar-se a mim numa evocação dos passeios ao longo do areal, mesmo à beirinha, ao alcance do beijo das ondas, cuja fala me projecta sempre em horizonte relaxante pelo estremecimento da beleza e da voz do mar, que nunca me cansa, e o mar oferece-me prendas, pequenas pedras em que vejo formas caprichosas esculpidas e trago para casa. Desta última vez ofereceu-me um pequeno buda e um papagaio esguio, descobrindo este no refluxo que me obrigou a entrar mais dentro da água.
Agora aqui estou nesta nossa cidade do interior com temperatura escaldante, como se fosse treino de entrada nas chamas do Inferno e eu ainda com o mar agarrado à pele, como tatuagem de bronze claro do vento e do sol também quente, mas com o descanso desse longe, que me faz agora suspirar já pela tal próxima vez. Este Agosto é de fogo e não é apenas o do sol. Afinal temos mesmo as chamas do Inferno, que nos entram pelas imagens televisivas dos incêndios que devoram certas zonas de Portugal. Embora possa não nos tocar directamente o que arde, o que é privilégio, é impossível ficar indiferente perante a aflição dos que assistem às línguas hiantes das chamas que avançam para destruir os bens de uma vida e as próprias vidas. O homem perdeu o juízo e é muito responsável pelo clima que perdeu o norte, enlouquecido. A Natureza está a cobrar pelo desvario humano.
O fogo é agora vivido disforicamente pela angústia, pela aflição, pela tristeza. Todavia, o fogo tem um sentido eufórico também: purificador (e basta lembrar os rituais iniciáticos de várias religiões), regenerador, lembrando, como exemplo, a liturgia católica e a bênção do fogo novo, realizada no Sábado Santo da Páscoa. Aliás, a figura de Cristo é Fogo, pois veio limpar o mundo do pecado, da desesperança e do ódio. Há ambivalência no fogo, a sua origem tanto pode ser divina como demoníaca. Simbolicamente, o fogo liga-se a intelecto, o fogo do espírito estende os liames para o conhecimento. Ratifica Plutarco: «A mente é um fogo a ser aceso, não um vaso a preencher». Associamos o vermelho ao fogo e ao Verão e ainda ao coração e integram- -se sentimentos como a cólera e o amor. Disse Gandhi: «Por mais duro que alguém seja, derreterá no fogo do amor. Se não derreter é porque o fogo não é bastante forte».
Acrescento ainda, na perspectiva de símbolo de vida, que há uma significação sexual do fogo, obtido desde tempos imemoriais por fricção num movimento de vaivém. Vários exemplos poderão ser encontrados na poesia. Escolho os primeiros seis versos de um poema de José Jorge Letria («Que não arrefeça em nós»):
Que não arrefeça em nós
nem a luz nem o fogo
e que a fome entardecida
pela penumbra da fadiga dos olhos
nunca renuncie ao sabor dos frutos
ou à febre da sede dos lábios.
(…)
Lembremos igualmente o primeiro verso do famoso poema de Camões: «Amor é fogo que arde sem se ver». E que fique registado para os eternos amantes de poesia: «A poesia é um fogo cuja chama faz arder o espírito de quem ama» (Pierre de Ronsard, séc. XVI)
Por outro lado, há o aspecto negativo do fogo: queima, devora, destrói, obscurece, sufoca. Como já referi, assistimos ao flagelo e não só em Portugal. Não vou hoje tecer considerações acerca do crime de fogo posto, que deve ter punição exemplar. Porém, faço alguns excertos da longa «Ode ao Fogo» de Pablo Neruda, que agrega aspectos negativos e positivos na palavra fogo:
Desgrenhado fogo, /enérgico, / cego e cheio de olhos, / desbocado, / serôdio, repentino, / estrela de ouro, / ladrão de lenha, / silencioso, bandoleiro, / comedor de cebolas, / velhaco faiscante, / cão raivoso dum milhão de dentes, / escuta-me, / (…). // Mas tu não és / só palavra, / ainda que toda a palavra / sem brasa / se desprenda e caia / da árvore do tempo. / Tu és / flor, / voo, / consumação, abraço, / terrível substância, / destruição e violência, / sigilo, tempestuosa / asa de morte e vida, / criação e cinza, / centelha deslumbrante, / espada cheia de olhos, / grandeza, /(…) // Agora / sabes / que não podes / comigo: / eu transformo-te em canto, / levanto-te e desço-te, / aprisiono-te nas minhas sílabas, / algemo-te, ponho-te / a assobiar, / desfaço-te em gorjeios, / um canário engaiolado. (…) Aqui / estás condenado / à vida e à morte. / se me calo / apagas-te. / Se canto / derramas- -te / dando-me a luz que necessito. (…) // Vigia-me, / vive, / para que te deixe escrito, / para que cantes / com as minhas palavras / à tua maneira, / ardendo.

Na dimensão negativa deste Agosto temos ainda a considerar a continuação das guerras que alarmam o mundo, com relevo de olhos postos em Gaza, onde se foi condenado a morrer à fome, a fogo lento, condenação vinda do facínora israelita Benjamin Netanyhau, porque tem o poder, embora condenado por quase todo o mundo. No mais arrepiante da palavra fogo, podemos referir a frase feita que é usual: a ferro e fogo ou a ferro e fogo e sangue, de que também se destaca a guerra Rússia e Ucrânia, porque a Rússia concretizou a invasão dum país livre, uma vez que Putin é guiado por megalómanos objectivos imperialistas. E logo aparecem palavras como bombas nucleares e mentiras (as falsas notícias) – é fogo de vista ou estão a brincar com o fogo? E os caluniadores, os da mentira, que aparecem em momentos de lutar por um poder, as eleições, por exemplo, e mancham nomes, frequentemente com injustiça? Lá dizia Voltaire, e muitos outros pensadores aproximam-se desta ideia: «Os caluniadores são como o fogo que enegrece a madeira verde, não podendo queimá-la».
Estremeço pelas linhas de negatividade. Foi como se uma onda maior me molhasse sem eu querer. Por isso, chama-me o mar, a magia da bola de fogo dum pôr- -do-sol naturalmente belo e benfazejo. A memória do mar projecta os meus sentidos numa evasão para cheiro de maresia, fragor ou sussurro de ondas, frescura de brisas e de areia húmida e visão da imensidade grandiosa: a beleza do Mar, a beleza do planeta que habitamos. E é desse encanto azul, onde se balançam as algas, que nasce o verde de ainda termos esperança.

20/08/2025
 

Outros Artigos

Em Agenda

 
29/05 a 12/10
Castanheira Retrospetiva Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco
02/08 a 26/10
Barro e AlmaMuseu Francisco Tavares Proença Júnior, Castelo Branco
10/09 a 30/09
Cores em movimentoBiblioteca Municipal de Proença-a-Nova

Gala Troféu Gazeta Atletismo 2023

Castelo Branco nos Açores

Video